quarta-feira, 28 de março de 2007

ISTO É DE 28 DE MARÇO

DESTAQUES

- Ministro sob suspeita - Exclusivo: Treze processos por fraude, CNPJ falso e denúncia de ser o operador de um novo mensalão. Saiba como age nos bastidores Alfredo Nascimento, o escolhido para reassumir o Ministério dos Transportes. #
Ministro sob suspeita - Alfredo Nascimento, ex-titular dos Transportes, é acusado de comprar votos, usar CNPJ falso e comandar obras superfaturadas. Mesmo assim, pode voltar ao governo.#
Entrevista/Raúl Reys - "Não é hora de conflitos" - É possível reconciliar um país dividido como a Colômbia e pôr fim à guerra? O chefe da Comissão Internacional das Farc, a guerrilha da selva, acha que sim. #
* E mais: Abrimos a Caixa-Preta da Infraero - Os documentos que mostram esquemas milionários na instituição que opera os aeroportos brasileiros. #
Por dentro da caixa-preta da Infraero - Um edifício em forma de caixote na zona central de Brasília de repente virou foco de atenções da República. Ali funciona a sede da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária. Infraero, estatal que administra os 67 aeroportos brasileiros. De uns dias para cá os funcionários da Infraero, outrora pacatos como servidores públicos, entraram em stress. Isso porque perto dali, no Congresso Nacional, os partidos de oposição resolveram lutar para criar uma nova Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do Apagão Aéreo. O alvo visado, curiosamente, não eram os controladores de vôo, principais responsáveis pelo caos nos aeroportos, nem as companhias aéreas. (Por Hugo Marques e Hugo Studart) #
Entra Miguel... ...Sai Furlan - Depois de ouvir muitos nãos, Lula recorre a um hábil negociador para assumir o Desenvolvimento e ressuscitar as câmaras setoriais. #
O que os gigantes querem da Ipiranga - Petrobras, Ultra e Braskem fecham por US$ 4 bilhões o maior negócio do ano. Como seus planos ambiciosos vão afetar a concorrência? #
A morte por trás do Etanol - Recordes de produtividade e busca de energia "limpa" são a face moderna da produção de cana-de-açúcar. Mas isso é sustentado por um regime de semi-escravidão a que ainda são submetidos os trabalhadores.#
TEXTOS
Ministro sob suspeita
Por RUDOLFO LAGO e HUGO STUDART
Alfredo Nascimento, ex-titular dos Transportes, é acusado de comprar votos, usar CNPJ falso e comandar obras superfaturadas. Mesmoassim, pode voltar ao governo
Ex-cabo da Aeronáutica, Alfredo Nascimento entrou para o mundo dos negócios com uma borracharia e logo se tornou um grande fornecedor de pneus para a Prefeitura de Manaus (AM). Virou servidor público, formou-se em letras e matemática, galgou postos na administração pública e se elegeu prefeito da capital amazonense. Chegou a Brasília como ministro dos Transportes no primeiro governo Lula, em 2003. Deixou o cargo para se candidatar a senador, na última eleição. Está rico e foi eleito. Presidente de honra de seu partido, o PR, Alfredo pode se tornar novamente ministro dos Transportes – uma pasta com orçamento de R$ 11 bilhões – e ter a missão de tocar grandes obras e destravar os gargalos do crescimento. Na semana passada,Gilberto Carvalho, secretário particular da Presidência, informou que o presidente Lula já formalizou o convite a Alfredo. E ele aceitou. No entanto, ainda tentar manter sob o controle do Ministério a gestão dos portos, tarefa que Lula pretende remeter ao PSB. O problema é que a presença de Alfredo no governo poderá ser uma enorme dor de cabeça para o presidente e um prato cheio para a oposição, por três diferentes razões.
Primeiro: a Justiça Eleitoral do Amazonas pode levar o presidente à situação vexatória de ter um ministro com mandato parlamentar cassado. Alfredo é acusado de falsificar documentos fiscais, comprar votos e ter cometido o crime de abuso do poder econômico na campanha. Segundo: líderes de oposição afirmam ter ouvido relatos de deputados que foram sondados para se filiar ao PR, por Alfredo ou seus emissários, em troca de cargos e liberação de verbas administradas pelo Ministério dos Transportes, prática que aponta para a existência de um segundo mensalão. Terceiro: a volta de Alfredo ao governo trará a reboque as irregularidades constatadas em uma das mais polêmicas séries de obras do governo Lula, a Operação Tapa-Buracos.
Alfredo elegeu-se senador com 629,6 mil votos (47,49% do total). Três processos, porém, tramitam na Justiça. O ex-governador Gilberto Mestrinho, do PMDB, o acusa de ter usado um CNPJ falso no início da disputa. A Lei Eleitoral é clara: a campanha só pode começar quando o candidato tiver um comitê financeiro para receber doações. Esse comitê tem que ter uma inscrição na Receita Federal, o CNPJ. Mestrinho afirmou à Justiça que o número que aparecia no material de campanha de Alfredo, o CNPJ 08.134.682/0001-37, não existia. O corregedor eleitoral Jovaldo Aguiar enviou um ofício à Receita para comprovar a denúncia. Em 18 de setembro, o chefe da Receita em Manaus, Eduardo Ponte Barbosa, respondeu: “Não consta em nosso sistema cadastral o CNPJ indicado.” Mestrinho argumenta que, se não havia CNPJ, não poderia haver doações oficiais para comprar material de campanha. Ou seja, aquilo seria produto de caixa 2.
Há ainda um segundo processo movido por Pauderney Avelino, do PFL, sobre uso de material de campanha não declarado. Alfredo defende-se dizendo que ambas são acusações típicas de adversários derrotados. Contudo, um terceiro processo é movido pelo Ministério Público Eleitoral. Alfredo é acusado de “captação ilícita de sufrágio”. Ou seja: compra de votos. De acordo com a denúncia, ele pagou a gasolina usada numa carreata na cidade de Manacapuru. Bastava passar num posto local, o Pinheirinho, para que a gasolina fosse entregue junto com um santinho eleitoral de Alfredo. A Justiça apreendeu no posto 36 requisições de cinco litros de gasolina cada uma e 334 santinhos. “Não se admite que sejam (...) oferecidos quaisquer tipos de bem (...) com a intenção de se obter votos dos eleitores”, escreve na ação o procurador regional eleitoral Edmilson Barreiros. Trata-se de um caso grave. No Amapá, o senador João Capeberibe perdeu o mandato por comprar votos de duas eleitoras por R$ 50.
Quando o PR nasceu, na fusão do PL do mensalão com o Prona do Enéas, Alfredo virou o presidente de honra da legenda. Ocupou o vácuo político deixado pelo vice-presidente José Alencar, que trocou de partido. Embora batizado de Partido Republicano, líderes do PFL, do PSDB e do PPS reclamam que deputados de seus partidos têm sido assediados para ingressar no PR a partir de propostas pouco republicanas. Oito casos foram relatados a ISTOÉ. Eles seguem padrão semelhante. Quem aborda os deputados é o líder do PR na Câmara, Luciano Castro (RR). A conversa, segundo os oito relatos, sempre se inicia com o argumento de que deputado de Estado pobre não pode ser de oposição, porque precisa de recursos federais para as suas regiões ou não se reelege. Aí, oferece-se a possibilidade de indicar cargos e liberar recursos orçamentários nas áreas ligadas ao Ministério dos Transportes. Seis deputados receberam a oferta de ganhar o poder sobre o escritório local do DNIT, órgão encarregado da construção e manutenção das rodovias federais. No Congresso, o expediente ganhou o apelido de “mesadão”. O homem que denunciou a existência do mensalão, o ex-deputado Roberto Jefferson, confirma: “Ouvi falar de pagamento de luvas de R$ 400 mil e mesada de R$ 50 mil. Tomara que o presidente ponha um ponto final nisso.”
Com ou sem mensalão, é certo que o PR tem ganhado corpo. Saiu das urnas com 23 deputados eleitos e hoje contabiliza 38. No Amapá, Lucenira Pimentel trocou o PPS pelo PR. Ela é mulher do prefeito de Macapá, João Pimentel, do PT. Na festa de sua filiação, ela disse que foi para a legenda por conta da promessa de implantar uma unidade do DNIT no Estado. Os mesmos argumentos teriam sido tentados com um outro parlamentar do Amapá, David Alcolumbre. Ele confirmou a abordagem, mas recusou. “Sou deputado de primeiro mandato, não posso falar”, disse. Outro pefelista assediado foi Lira Maia, do Pará. O PR conseguiu tirar do PFL os baianos José Rocha e Tonha Magalhães. Teriam envolvido cargos em portos as conversas que levaram Nelson Goetten a deixar o PFL em Santa Catarina e Maurício Quintella a sair do PDT em Alagoas. “Isso são acusações levianas”, reage o líder republicano Luciano Castro. Segundo ele, os oferecimentos àqueles que quiseram migrar para o PR giraram em torno da possibilidade de influir na montagem dos diretórios regionais do partido que, novo, ainda tem de se estruturar.
Em todos os casos acima, de acordo com os relatos, os deputados foram abordados pelo líder Luciano. Em um caso, relata-se o envolvimento direto de Alfredo. O deputado Márcio Junqueira (PFL-RR) conta que manteve dois encontros pessoais com o provável futuro ministro. Nessas conversas, Alfredo lhe prometeu a liberação de emendas de obras rodoviárias. Esse caso foi relatado por ISTOÉ, em entrevista gravada, e publicado na edição da semana passada. Pressionado, Junqueira enviou uma carta à revista na qual dava a entender que voltava atrás no que dissera. Na última semana, em outra entrevista gravada, explicou o teor da carta: “Eu não estou retirando nada do que disse. Mas tive de dar outro enfoque por conta da pressão que fizeram em cima de mim”, disse.
A volta de Alfredo ao governo trará ainda a reboque os problemas constatados pelo TCU na Operação Tapa-Buracos. Em 13 processos já concluídos, obtidos por ISTOÉ com exclusividade, há casos assombrosos. No Amazonas, os auditores do TCU procuraram em quatro diferentes endereços e não conseguiram sequer encontrar a empresa contratada – a BemBrasil Construtora Ltda. – para duas obras na BR-174. Em um dos trechos, somou-se um segundo rolo: a estrada estava em boas condições, não precisava de obra tapa-buraco. Mas o dinheiro foi pago. Na BR-153, em São Paulo, verificou-se indício de superfaturamento. A Construtora Planalto Ltda. foi contratada por R$ 5,2 milhões quando, desde 2004, o Comando do Exército já fazia a conservação da rodovia por R$ 4 milhões. Os auditores também questionam se havia necessidade de obras emergenciais ali, já que a estrada estava em bom estado. Pagaram-se R$ 4,5 milhões como obra emergencial (e, por esse argumento, dispensando-se a licitação) por serviços prosaicos, como pintura de faixas e capina do mato na margem da estrada, à Sconntec Construtora de Obras Ltda. em trecho da BR-476, no Paraná.
Obras foram pagas sem que houvesse sequer contrato assinado. Caso, por exemplo, da BR-265, em Minas Gerais, numa obra de R$ 2,9 milhões feita pela Egesa Engenharia S.A. Ou com a Torc – Terraplenagem, Obras Rodoviárias e Construções Ltda., num trecho da BR-377, no Rio Grande do Sul. Nesse relatório específico, o ministro Augusto Nardes reservou uma advertência especial ao DNIT: “Diante da situação descrita, permito-me externar minha preocupação quanto à administração do DNIT, (...) a ausência de um planejamento adequado às ações de manutenção da malha viária (...) contribui (...) para a precariedade da conservação das rodovias.” No total, o TCU questiona R$ 32,4 milhões em obras da Operação Tapa-Buracos. Um rolo de 1,3 mil quilômetros, mais que a distância que separa, por exemplo, Brasília do Rio de Janeiro. A Operação Tapa-Buracos foi idealizada e encomendada por Alfredo Nascimento quando era ministro dos Transportes. Agora ele pode voltar a ser o titular da Pasta, com ou sem os portos. Conseguirá?

A morte por trás do etanol
Recordes de produtividade e busca de energia “limpa” são a face moderna da produção de cana-de-açúcar. Masisso é sustentado por um regime de semi-escravidão a que ainda são submetidos os trabalhadores
São 4h30 em Guariba, cidade do noroeste do Estado de São Paulo, quando o ronco dos motores de dezenas de ônibus quebra o silêncio da madrugada. Por seis vezes na semana, o barulho das rodas sobre as acanhadas calçadas do município anuncia o trabalho a um exército de bóias-frias. Dali a pouco, essa legião estará nas lavouras de cana para mais uma vez fazer história. Se na última safra – 2006/07 – os brasileiros cortaram e moeram mais de 425 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, este ano as estimativas prevêem uma produção 10% maior. São recordes sobre recordes de produtividade extraídos de plantações espalhadas por mais de seis milhões de hectares de terra. O feito consolida o País no invejável patamar de maior produtor mundial de álcool e etanol.
Tal riqueza atraiu os olhares do mundo para o produto que já é classificado por economistas como o novo “ouro branco” do planeta. Empresários, banqueiros e até o presidente dos Estados Unidos se interessaram pelo tesouro e desembarcaram no Brasil nas últimas semanas buscando transformá-lo numa commodity alternativa e barata aos combustíveis fósseis. Enquanto uns foram à Bolsa de Valores, outros estiveram em tratativas com o governo brasileiro. Porém, o que Bush e os investidores não viram e talvez não saibam é que a riqueza gerada pela fantástica produção desse “ouro branco” se assenta na exploração brutal de milhares de homens e mulheres que cortam e colhem cana pelo Brasil adentro. Quase 120 anos depois da abolição da escravidão, os cortadores de cana ainda vivem o cativeiro da terra, sob o tacão de um “chicote invisível”, como definiu Maria Cristina Gonzaga, pesquisadora do Ministério do Trabalho. A cana literalmente mói a carne de um milhão de miseráveis trabalhadores rurais. Quem entra nos canaviais brasileiros tem a impressão de estar fazendo uma viagem no tempo, retornando ao século XVII. Homens e mulheres são comercializados como gado, trabalham jornadas de até 12 horas, muitos passam fome e outros chegam a tombar mortos de pura exaustão. Relatório do Ministério do Trabalho (MT), divulgado no início do mês de março, mostra que só no ano passado 450 trabalhadores do setor sucroalcooleiro morreram nas usinas. Alguns foram assassinados, mas muitos morreram em conseqüência de banais acidentes de transporte. Outros foram carbonizados durante as queimadas. Vários perderam a vida simplesmente por excesso de trabalho. “O suor, o sangue e a morte banham o açúcar e o álcool brasileiro”, denuncia a ISTOÉ Maria Cristina Gonzaga, técnica da Fundacentro, órgão do MT, responsável pelo estudo. Nas contas dela, nos últimos cinco anos, o trabalho na lavoura de cana ceifou a vida de 1.383 trabalhadores.
Entre eles, o migrante mineiro Antônio Moreira, que largou o Vale do Jequitinhonha na década de 70 para “fazer safra” nas lavouras paulistas. Aos 55 anos, Antônio caiu morto de cansaço em meio às canas que empilhava. “Ele tinha cortado 16 toneladas aquele dia”, lembra a viúva Maildes Moreira Araújo, 55 anos, também cortadora de cana. Foi a terceira vez que tal desgraça se abateu sobre os Moreira. “Meu tio e um primo também morreram na mesma situação”, diz Antônio Moreira Filho, 32 anos, que trabalhava com o pai nos canaviais desde os 14.
“Do cortador de cana é esperada a produção de uma máquina”, diz Miguel Ferreira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cana de Jaboticabal, interior paulista, região responsável por 60% da produção nacional de álcool e açúcar. Miguel fala de cátedra. O atual sindicalista foi cortador de cana durante seis anos e, assim como seus pares, produzia diariamente seis toneladas de cana. “Hoje exige-se a produção de no mínimo dez toneladas diárias por homem. Não tem corpo que agüente”, constata Miguel.
Segundo a Universidade Federal de São Carlos para cortar dez toneladas e ganhar R$ 24 é preciso percorrer cerca de nove quilômetros a pé por entre o canavial, desfechar cerca de 73.260 golpes de podão (facão) em 36 mil flexões de pernas.
E mais, o cortador de cana terá que levantar e carregar pelo menos 800 montes de 15 kg de cana cada um, por uma distância de três metros, empilhando a produção do dia. Os médicos do Ministério do Trabalho, que estudaram a saúde do cortador de cana concluíram que eles chegam a perder em um dia de trabalho cerca de oito litros de água.
E o pior é que a situação desses condenados da terra pode se agravar. A partir deste ano, começa a ser colhido um novo tipo de cana, mais leve por ter sido geneticamente modificada. Além de pesar menos – pois elimina bastante a água –, esse tipo de cana concentra uma quantidade muito maior de sacarose (açúcar). Tudo ótimo, menos para o trabalhador, que precisava cortar 100 metros de cana para produzir dez toneladas e por causa da novidade transgênica precisará cortar o triplo para produzir a mesma quantidade. Aos 52 anos, Maria dos Santos corta nove toneladas para levar para casa R$ 512 no final do mês. Quando soube que terá que trabalhar três vezes mais para ter o mesmo rendimento, não se conteve: “Vamos morrer!”, desesperou-se.
Hábeis em implementar modernizações tecnológicas, os usineiros não demonstram intenção de alterar as arcaicas relações de trabalho que predominam no setor sucroalcooleiro. “As práticas impostas por eles, em muitos casos, ainda são escravagistas”, diz a técnica do Ministério do Trabalho. Veja-se, por exemplo, o processo de seleção dos trabalhadores. Eles são “vendidos” para intermediários que selecionam a mão-de-obra para usinas. Trazidos das profundezas do País para dar duro nos canaviais, esses escravos do século XXI são cooptados por “gatos”, uma espécie de empreiteiro que busca pessoas que, em troca de migalhas, se submetem a todo tipo de humilhação. Para cada cortador de cana trazido para a usina, capaz de produzir 12 toneladas por dia, o “gato” recebe em média R$ 60. Qual a vantagem? Esses cortadores são escolhidos a dedo e não reclamarão de serem obrigados a viver em alojamentos decrépitos. Eles também não reclamam do pagamento abaixo dos pisos salariais e ainda admitem viver confinados nas propriedades onde a colheita ocorre oito meses por ano. “Só 20% dos trabalhadores ligados ao setor sucroalcooleiro no Brasil têm conquistas preservadas, o resto são escravos”, garante Miguel, o sindicalista. “Não é difícil constatar a miséria e a exploração a que essas pessoas estão submetidas. O Ministério do Trabalho é que dá as costas para o problema”, indigna-se Miguel.
A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Única), entidade que representa os usineiros, não fala sobre direitos do trabalho. Segundo a assessoria de imprensa, eles apenas “cumprem a lei”. Mas em relação ao crescimento da produção eles são expeditos. Para os donos dos engenhos, as máquinas produzirão, até 2013, 36 bilhões de litros de álcool – um bilhão a mais que a atual produção mundial. Grande parte dessa produção atenderá aos mercados americano e europeu. No ano passado, 19 bilhões de litros de álcool foram destilados, uma supersafra que movimentou mais de R$ 40 bilhões na economia, US$ 8 bilhões em exportações, equivalentes a mais de 3,5% do PIB brasileiro. Segundo as estimativas do setor sucroalcooleiro, uma nova usina de cana surgirá a cada mês no País nos próximos dois anos.
Este crescimento acelerado no plantio e na produção preocupa governantes e economistas. Muitos temem que esse boom leve o Brasil de volta à monocultura. Hoje, várias plantações de alimentos e áreas de pastagem estão sendo substituídas por lavouras de cana-de-açúcar. Preocupados com essa possibilidade, alguns Estados já se preparam para enfrentar a situação. Em Mato Grosso, na região do Pantanal, já foi proibida a implantação de usinas de álcool. No Estado de Goiás, algumas prefeituras querem limitar a entrada da cultura da cana. Em São Paulo, responsável por 60% da produção nacional, um projeto do deputado estadual Simão Pedro (PT) propõe que os fazendeiros de regiões do Estado onde a cultura da cana se expande sejam obrigados a reservar 10% das terras para outros tipos de cultura. “É fato a expansão do setor, mas precisamos criar alguns limites, senão daqui a uns dias seremos obrigados a importar alimentos básicos”, diz Simão. Enquanto isso, o presidente Lula, inebriado com o etanol, disse que os usineiros passaram de bandidos a heróis.
10 mil quilos de cana por dia é a cota mínima que cada cortador deve produzir

Por dentro da caixa-preta da Infraero
Como os Correios, a empresa foi loteada entre o PT e o PTB e as falcatruas já descobertas somam R$ 3 bi apenas em oito aeroportos
Por HUGO MARQUES e HUGO STUDART
Um edifício em forma de caixote na zona central de Brasília de repente virou foco de atenções da República. Ali funciona a sede da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária, Infraero, estatal que administra os 67 aeroportos brasileiros. De uns dias para cá, os funcionários da Infraero, outrora pacatos como servidores públicos, entraram em stress. Isso porque perto dali, no Congresso Nacional, os partidos de oposição resolveram lutar para criar uma nova Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do Apagão Aéreo. O alvo visado, curiosamente, não eram os controladores de vôo, principais responsáveis pelo caos nos aeroportos, nem as companhias aéreas. Mas a Infraero. O plano, cantado em verso e prosa pela oposição, era usar o apagão como desculpa para devassar as atividades da estatal e acusar o governo Lula em novas denúncias de corrupção. Do Palácio do Planalto chegou a ordem de não permitir, em hipótese alguma, que a Infraero fosse investigada. Na noite da quarta-feira 21 o Planalto reuniu sua base parlamentar e deu uma surra na oposição, engavetando a CPI. O caso agora será decidido pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o que, afinal, essa estatal tem tanto a esconder?
A empresa é investigada, simultaneamente, e por diferentes razões, pelo Tribunal de Contas da União, pela Controladoria Geral da União e pelo Ministério Público Federal. Só no TCU, há 92 processos graves em curso. Somente nas obras de oito aeroportos, incluindo Congonhas e Guarulhos, que juntas somam R$ 3 bilhões, foram encontrados fortes indícios de superfaturamentos, pagamentos ilegais, licitações dirigidas – e toda sorte de desrespeito à Lei das Licitações. O maior volume de irregularidades ocorreu na gestão do deputado federal Carlos Wilson, do PT, que foi presidente da Infraero entre 2003 e 2006. “O presidente Lula me mandou investir na modernização dos aeroportos”, lembrou Carlos Wilson a ISTOÉ. “Não estou dizendo que pode não ter acontecido algo irregular.” Os documentos levantados por ISTOÉ apontam que os personagens envolvidos nos esquemas têm, quase todos, ligações diretas com o PT e o PTB do deputado Roberto Jefferson. No início do governo Lula, essas legendas lotearam, meio a meio, duas estatais. Uma foi os Correios – estopim do escândalo do mensalão. A outra foi a Infraero. “A sistemática usada nos contratos ilegais da Infraero é igual à que foi usada pelos Correios para financiar o mensalão”, afirma o deputado Onyx Lorenzoni, líder do PFL. “É muita coincidência.”
As maiores irregularidades estão concentradas em São Paulo, onde há três grandes aeroportos em ampliação – Guarulhos, Congonhas e Viracopos. A obra mais vultosa é a reforma de Guarulhos, R$ 2 bilhões. Segundo relatório do TCU, as obras estão com “sobrelevação de preços, os quais, em comparações procedidas, apresentam variações para mais em relação ao referencial determinado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias”. Isso significa que o TCU descobriu um superfaturamento descarado no valor total da obra. Outro problema levantado pelos auditores é que uma das construtoras beneficiadas, a Serveng, estava impedida de firmar contratos com o governo “em face de restrições junto à Fazenda Nacional”. A Infraero passou por cima desse detalhe. Em Congonhas, onde os investimentos são de R$ 150 milhões, o TCU aponta a compra de equipamentos superfaturados, vícios de licitação e subcontratação ilegal de serviços. O caso mais flagrante é o da compra dos fingers, aqueles corredores suspensos que ligam os portões de embarque aos aviões. A Infraero, que ainda não terminou a obra, paga R$ 2,2 milhões por unidade. Os analistas do TCU acharam muito. Então orçaram o equipamento no mercado e descobriram que podem ser comprados por R$ 630 mil cada um – quase quatro vezes menos. O relatório foi enviado para julgamento dos ministros do TCU e, simultaneamente, para o Ministério Público de São Paulo, para que haja punição criminal aos responsáveis pela fraude. “Valeu a pena os fingers custarem um pouco mais”, procura defender-se Carlos Wilson. “Se não estivessem instalados, o apagão aéreo teria sido pior.”
Pagamento ilegal
Quando estourou o apagão aéreo, em fins do ano passado, o ministro Waldir Pires, da Defesa, mandou a Controladoria Geral da União passar o pente-fino na Infraero. Foi, então, encontrado um contrato de R$ 26,8 milhões, sem licitação, firmado entre a Infraero e a FS3 Comunicação. A empresa, criada quatro meses antes de assinar o contrato, foi convocada pelo ex-diretor comercial da Infraero Fernando Brendaglia para gerenciar a comercialização de publicidade em aeroportos. O caso gerou ação popular na Justiça Federal de Brasília, movida por um empresário que se sentiu lesado. Na semana passada, ISTOÉ teve acesso a um documento interno da Infraero, assinado pelo gerente de tesouraria, Juvêncio Gomes da Silva, apontando “pagamento irregular” de R$ 5 milhões à FS3. “Solicitamos providências junto ao fornecedor para a regularização de pendências”, escreve o tesoureiro à Superintendência Comercial.
Outra maracutaia envolve a compra de 79 ônibus para carregar os passageiros nos pátios dos aeroportos, por ordem do brigadeiro José Carlos Pereira, atual presidente da estatal. O edital da Infraero sugere o valor de R$ 49,8 milhões como referencial para a operação. O pregão eletrônico estava marcado para o dia 22 de dezembro passado. Mas o Conselho de Administração achou tudo estranho e, antes do ato consumado, mandou que a direção da empresa justificasse a necessidade da compra. O pregão foi remarcado para 5 de fevereiro. Deu errado de novo. Desta vez, uma empresa que não estava entre os fornecedores tradicionais da Infraero, a Busscar, de Joinville (SC), ofereceu os 79 ônibus por R$ 28 milhões, quase metade do preço apontado pela Infraero. A licitação está suspensa. O brigadeiro Pereira não decidiu se compra da Busscar ou se anula a licitação.
No começo do governo Lula, Carlos Wilson desembarcou na Infraero com a missão de reformar 65 aeroportos com velocidade de jato. Recebeu R$ 2,8 bilhões só para investimentos. Recebeu também a ordem do presidente Lula de lotear a estatal entre PT e PTB. A diretora de Engenharia, Eleuza Therezinha Lores, foi indicação do deputado Luiz Antônio Fleury Filho, do PTB paulista. Quase todas as falcatruas com obras passaram por ela. A diretoria comercial foi para Brendaglia (o da FS3), cota pessoal de Wilson. A financeira foi entregue a Adenauer Nunes, cota de Roberto Jefferson (ele foi demitido pelo Conselho por causa de contratos irregulares). A diretoria administrativa foi entregue a Adelmar Sabino, afilhado do senador Romeu Tuma, do PFL paulista. Sabino e Nunes foram os responsáveis pela maior parte das licitações agora sob investigação.
Esquema mantido
Nos Estados, também houve aparelhamento. A Superintendência de São Paulo foi para Miguel Choueri, cota do prefeito de Guarulhos, Elói Pietá, do PT. A superintendência do Leste (MG, RJ e ES) foi para Juarez Furtado, da confiança de Jefferson. No Paraná, quem indicou os nomes do segundo escalão foi o deputado Íris Simões, sanguessuga do PTB.
Quando o brigadeiro Pereira chegou, recebeu ordens de cima para manter todo esse esquema. Estão quase todos em seus postos. Por conta das investigações em Congonhas, a Justiça Federal já quebrou o sigilo bancário e fiscal de Carlos Wilson, da engenheira Eleuza e da assessora jurídica Josefina Pinha. Também existe uma apuração da CGU sobre a evolução patrimonial dos diretores da Infraero. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda que investiga lavagem de dinheiro, já enviou à CGU relatórios sobre as movimentações atípicas de cada um. O caso mais complicado seria de Eleuza. De 2005 para cá, o patrimônio de Eleuza realmente cresceu. Ela e o marido, ex-militar, hoje piloto da Gol, compraram um flat em frente ao Aeroporto de Congonhas e construíram uma casa no Setor de Mansões Park Way, em Brasília. Ela diz que não há nada de irregular. “Está tudo declarado no meu Imposto de Renda”, afirma. Na casa, ela gastou pelo menos R$ 500 mil nos últimos dois anos, conforme ela própria estima. Eleuza, que ganha R$ 13 mil líquidos por mês, dirige um Mercedes. “É tudo compatível”, defende-se. O Ministério Público também a investiga por ter encontrado indícios de favorecimento a um grupo seleto de empresas, como a Planoway e a Planorcon, subcontratadas pelos consórcios que fazem hoje algumas das principais obras em aeroportos do País. A Planoway, por exemplo, é de propriedade de ex-dirigentes da Infraero. Um dos sócios, o brigadeiro da reserva Theodósio Pereira da Silva, foi presidente da estatal entre 1990 e 1992, no governo Collor. Quanto à suspeita de que empreiteiras contratadas pela Infraero poderiam estar engordando o caixa 2 de partidos aliados do governo, Eleuza diz o seguinte: “Nossas obras são todas com preço justo e dentro dos nossos contratos não tem doação nenhuma.” Por dentro, nem poderia haver. E por fora? “Por fora eu não sei”, afirma.
Colaborou Rodrigo Rangel
MORTE NA CASERNA
Arthur, tenente do Exército, morreu no quartel com um tiro na testa. Ele sabia demais. Foi suicídio ou execução por queima de arquivo?
Por RODRIGO RANGEL– Vila Velha (ES)
Era manhã de sexta-feira, 28 de abril de 2006. No quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, em Vila Velha (ES), os militares se preparavam para marchar pela cidade, num exercício de rotina. O primeiro tenente Arthur Felipe de Carvalho Julião, 26 anos, estava perfilado. De repente, saiu da forma e dirigiu-se ao alojamento de oficiais. Às 10 horas, ouviu-se um tiro. Arthur estava morto, com um tiro na testa. Seu corpo foi encontrado no banheiro, sobre a pistola 9 milímetros que usava em serviço. Ao lado, um lenço cinza trazia mensagens escritas aos amigos e à família: “Me desculpem por tudo.” O inquérito policial militar que investigou a tragédia concluiu que houve suicídio. Mas, passados 11 meses, a morte do tenente ainda assombra a caserna. A hipótese de assassinato dentro do quartel é investigada pelo Ministério Público Militar (MPM). Arthur, tesoureiro do quartel, lidava com muito dinheiro e sabia demais.
O inquérito puxou o fio da meada de uma série de irregularidades no batalhão que poderiam resultar em graves punições para colegas de patentes inferiores e superiores. O caso tem mobilizado oficiais não só em Vila Velha, mas também no Rio de Janeiro – onde está o Comando Militar do Leste (CML), ao qual o batalhão está subordinado – e em Brasília, sede do comando-geral do Exército. ISTOÉ teve acesso aos autos, que tramitam sob segredo. São três volumes principais, mais 94 anexos, com documentos que atestam deslizes financeiros e administrativos do quase sempre hermético universo militar.
O caso mais importante envolve uma dívida milionária do batalhão com o Hospital Santa Mônica, situado num bairro vizinho. Há quase 20 anos o hospital presta serviços ao quartel. Mas, a partir de 2005, o atendimento passou a ser feito sem licitação nem contrato entre as partes. Mesmo assim, o hospital cobrava do Exército uma fatura de R$ 2,2 milhões. O tenente Arthur se negava a fazer o pagamento e sofria pressões para fazê-lo. Religioso, 25 dias antes de morrer, durante uma aula de crisma na Igreja Católica que freqüentava, ele anotou no caderno: “Tô tenso! Dívida com o Hosp. Santa Mônica no valor de R$ 2.200.000,00 não tem como pagar (...) O comandante tá obrigando a pagar.” A anotação é corroborada por depoimentos. “[O tenente] sentia-se pressionado pelo Comando do Batalhão e pelo setor financeiro do Hospital Santa Mônica para realizar o pagamento que não estava de acordo e não seguia a legislação vigente”, diz uma testemunha. Outro depoente relata uma conversa que teve com o próprio Arthur sobre seu drama, um dia depois de uma reunião na casa do comandante: “A ordem é pagar tudo, e eu, tenente Arthur Carvalho, não pago! Não pago! Não pago!”
O comandante em questão é o tenente-coronel José Otávio Gonçalves, chefe do batalhão. Ele admite que mandou o tenente pagar a dívida. “Eu dito como proceder administrativamente, mas o tenente, talvez por falta de informação ou pela pouca experiência, não queria pagar”, disse a ISTOÉ. “Apesar da situação irregular, a União devia ao hospital”, emenda.
O MPM quebrou o sigilo telefônico dos envolvidos. A promotora Adriana Santos, responsável pela investigação, cobrou explicações de instâncias superiores do Exército. Em 26 de janeiro, enviou ofício ao comandante militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira Filho, questionando os mecanismos de fiscalização dos contratos dos quartéis. Também pediu uma auditoria nos documentos referentes aos serviços supostamente prestados pelo hospital ao 38º Batalhão.
Até a morte do tenente, o imbróglio estava restrito aos limites do quartel. Internamente, uma sindicância apurava a ausência de contrato com o hospital, a partir de denúncia do próprio tenente Arthur. O major João Luiz de Almeida, destacado para presidir a apuração, declarou-se impedido de prosseguir no trabalho ao concluir que o comandante sabia da irregularidade. “Há indícios que sugerem que o Sr. Ordenador de Despesas [o comandante] tinha efetivamente conhecimento da ausência de contrato”, escreveu. Nesse caso, a sindicância teria de ser transferida para o CML. Curiosamente, até hoje o ofício não consta do inquérito.
Há mais embaraços. Arthur Carvalho estava incumbido de apurar outras irregularidades no quartel. O oficial presidiu uma investigação sobre pagamentos de pensão mantidos após a morte dos beneficiários. Tomou depoimentos de colegas e esbarrou num festival de erros burocráticos e falhas funcionais.
Todo esse emaranhado de histórias figurava secretamente no inquérito. Depois da morte do tenente, cartas anônimas chegaram a sua família, contestando a hipótese de suicídio. A mãe de Arthur, a professora aposentada Ana Romualda de Carvalho, contratou um advogado para ter acesso à investigação. Recorreu ao Superior Tribunal Militar em Brasília, que negou o pedido. O acesso só foi liberado após uma ordem da Justiça Federal. A família ainda questiona a conclusão do primeiro inquérito, bem como os amigos do tenente. Na página mantida no site de relacionamentos Orkut pelos intendentes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), onde Arthur formou-se oficial, levantou-se a suspeita: “Não pode ter sido suicídio. Ele era o cara mais tranqüilo que conheci”, escreveu um deles. Arthur era aplicado. Passou para a Aman aos 17 anos. Tinha planos de seguir carreira militar.
Também incomodada pela hipótese de assassinato, a promotoria militar pediu novas diligências e solicitou mais informações dos peritos da Polícia Civil. Em setembro do ano passado, alertou o comando do batalhão para a necessidade de se preservar o local da morte. Só que o quartel, instalado num forte construído em 1700, estava em obras para abrigar a feira de decoração Casa Cor. O banheiro já tinha sido quebrado. Todas as perícias, concluídas menos de dois meses após a morte, convergem para a hipótese de suicídio. Mas restam controvérsias. A reconstituição da morte não pôde ser feita e testemunhas que estavam perto do local onde o corpo foi encontrado não foram ouvidas no inquérito. Caso do ex-sargento Mário de Souza Gomes, que abandonou a farda em outubro depois de acusar seus superiores de perseguição. “É estranho, eu estava lá e não fui ouvido”, disse a ISTOÉ.
O episódio abriu caminho para a descoberta de outros problemas. Militares ouvidos por ISTOÉ revelaram que, no caso do 38º Batalhão de Infantaria, o tesoureiro também tem a atribuição de administrar um caixa paralelo. A contabilidade é minuciosa. Há doações de empresas privadas e créditos sem origem determinada. Os débitos aparecem relacionados a nomes de militares. O movimento é feito numa conta corrente mantida na agência 0346-8 do Banco Real, em nome do Grêmio Recreativo do Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva (NPOR). O comandante Otávio diz que o dinheiro serve para promover atividades esportivas e culturais no batalhão. Mas admite que também banca despesas do quartel, como a reforma do ginásio. De janeiro a maio de 2006, passaram pela conta R$ 49.200. O coronel não vê irregularidade, embora diga desconhecer os saques em nome de subordinados. “Disso eu não sabia”, diz. O caso, desde a morte do tenente até o que surgiu depois, segue em aberto. “A investigação está em andamento e ainda há mais diligências a fazer”, diz a promotora Adriana Santos. Na caserna, o estado é de alerta


OPINIÃO & IDÉIAS

LEI ÁUREA, CLT E EMENDA 3

Por LUCIANO SUASSUNA

Se o governo e o Congresso quiserem colocar nos trilhos o debate suscitado pela chamada Emenda 3, a questão não deveria começar pelo que está escrito nela, mas no porquê de ela aí estar. A Emenda 3 sacramenta uma prática popularizada na última década, de empresas contratarem funcionários como pessoa jurídica, com ambas as partes se beneficiando de impostos mais brandos. É evidente que o Fisco sai perdendo, mas isso não garante que uma inspeção ou multa de um auditor resolverá o problema. A brecha legal que permitiu tal conduta será, em último caso, julgada nos tribunais.
A Emenda 3, portanto, é uma tentativa canhestra de evitar o debate de fundo – o anacronismo da CLT e tudo o que o registro em carteira carrega consigo, da antiquada organização sindical ao recolhimento automático do Imposto de Renda, da gerência do FGTS à deficitária Previdência.
A CLT é anacrônica porque ela foi criada para a industrialização do País, agrupando diversas regulamentações surgidas depois do fim da escravidão, como forma de melhorar a vida dos operários, ao mesmo tempo que controlava essas massas. Como curiosidade, entre a Lei Áurea e a CLT passaram-se 55 anos e da CLT para a Emenda 3 se foram 64 e o ingresso numa era em que o trabalho intelectual superou o braçal. Exatas 47 leis e quatro medidas provisórias alteraram quase 150 artigos da CLT, a última mudança publicada na segunda-feira 19, com a Lei da Super-Receita.
Se tivesse servido para discutir formas de melhorar as múltiplas relações de trabalho existentes hoje, a Emenda 3 poderia desembocar numa arrecadação que vise à renda e não ao salário, num sistema previdenciário que estimule a poupança individual, numa organização sindical menos dependente de contribuições compulsórias. Mas para governo e Congresso é melhor fingir que o problema está apenas numa emenda.
Luciano Suassuna é Diretor de Redação da Revista ISTOÉ Gente
Ilusões perdidas
Por CLÁUDIO CAMARGO
Nos turbulentos anos 70, o italiano Cesare Battisti integrou uma organização extremista denominada Proletários Armados pelo Comunismo (PAC). Foi condenado à prisão perpétua na Itália sob a acusação de ter participado de quatro homicídios, o que ele sempre negou. Há dias, Battisti foi preso no Rio de Janeiro numa operação conjunta da polícia francesa e da PF brasileira.
Intelectuais e políticos, como o deputado Fernando Gabeira – ele mesmo um ex-guerrilheiro –, se articularam para pedir que o STF negue o pedido de extradição de Battisti. O gesto solidário pode parecer estranho para as novas gerações, acostumadas a associar “terrorismo” à matança indiscriminada de civis. Mas nos anos 60 e 70 a chamada “luta armada” tinha um significado, digamos, mais “nobre” do que as ações hoje perpetradas por homens-bomba. No Terceiro Mundo, impedidos de se manifestar por canais políticos normais, muitos jovens pegaram em armas para lutar contra ditaduras. Foram massacrados. Na Europa Ocidental, grupos de esquerda radical tentaram “atingir o coração” de um Estado que supunham “unidimensional”, totalitário, embora formalmente democrático. Só ajudaram a aumentar o poder do Estado sobre os cidadãos.
Como encarar a questão? É verdade que muitos militantes jamais abandonaram o moralismo idealista e autoritário. Seus gurus hoje são Fidel Castro e Hugo Chávez. Mas a maioria dos ex-ativistas deu adeus às armas e aceitou as regras do jogo democrático, como o próprio Gabeira, Joschka Fisher (ex-ministro do Exterior da Alemanha) e Antonio Negri (ex-integrante das Brigadas Vermelhas). Políticos como estes preservaram a generosidade de sentimentos que os empurrou à luta, mas romperam com o messianismo que produz monstros. Afinal, como lembrou Umberto Eco, o verdadeiro herói é sempre arrastado pelas circunstâncias e, se pudesse escolher, não seria herói.
Cláudio Camargo é Editorialista da Revista ISTOÉ

É hora de comprar o “rodolula”
Por MILTON GAMEZ
É uma pena que o presidente da República não enfrenta o caos dos aeroportos civis e movimenta-se com pontualidade nas bases aéreas militares, a bordo do “aerolula”. Já imaginou se o maior mandatário do País fosse vítima do apagão aéreo? Caso ficasse horas a fio “pagando mico” nos aeroportos, como aconteceu com Marta Suplicy, no dia em que foi a Brasília aceitar o convite de Lula para ser ministra do Turismo? Certamente seria educativo e obrigaria os responsáveis pela maior crise da aviação nacional a moralizar de vez o transporte aéreo, sem o qual um país-continente como o Brasil simplesmente não funciona.
Tolice imaginar que haverá uma solução rápida para o problema. Não se deve esperar muito de um governo que deixou a Varig à própria sorte no ano passado, mesmo sendo o maior credor da empresa. Milhares de passageiros foram vítimas do colapso da companhia e, como agora, mofaram nos aeroportos. No Natal passado, os passageiros da TAM foram os trouxas da vez. É muita incompetência.
Para piorar a situação, a opção de viajar por terra é trágica. As estradas federais estão em frangalhos. Quem se aventura entre São Paulo e Curitiba pela BR-116 enfrenta longos trechos esburacados em quase todos os 400 quilômetros que separam as duas capitais. Os caminhões fogem das crateras e trafegam nas faixas da esquerda. É uma vergonha, um desrespeito ao cidadão e à vida – isso, em dois dos Estados mais ricos. Imagine nos outros. O presidente deveria comprar um “rodolula” e pegar a estrada. Como nos tempos da Caravana da Cidadania, Lula sentiria na pele o Brasil real. E, quem sabe, pensaria duas vezes antes de reconduzir ao cargo o ex-ministro dos Transportes Alfredo Nascimento, co-responsável pela tragédia das estradas brasileiras e, segundo o PFL, por um esquema de corrupção nos órgãos do setor nos Estados.
Milton Gamez é Editor da Revista ISTOÉ
CARNE DE CAVALO, JAMAIS!
Por CHICO SANTA RITA
A ISTOÉ número 1947 traz um texto de Joel Stein, da Time – “Um alimento cavalar” –, em que se defende o consumo de carne de cavalo sob o simplório argumento de que é cruel matá-los, assim como “matar frangos, porcos, vacas e carneiros é uma maldade igual”.
O erro básico dessa afirmação é que o cavalo não deve ser incluído na categoria de animais comestíveis, pois a sua relação com o homem é de total proximidade. Mais correto é colocá-lo ao lado dos bichos de estimação. Só não vive nas nossas casas porque o tamanho é grande e os quintais pequenos.
Quem pôde conviver de perto com um cavalo sabe disso. Sou um desses felizardos, cheio de histórias. Lembro do mangalarga Irerê, que abria porteiras empurrando com a cabeça; revejo a alegria do cruza-árabe Pão Doce, que bebia cerveja das mãos da minha mulher; mas destaco o puro árabe Solvang, parceiro inesquecível. Ao escutar minha voz, relinchava lá de longe, mesmo sem me ver. Quando recebia a sela era garboso, rabo empinado, orelhas em pé. Feliz! Vivemos momentos inesquecíveis, pelas trilhas de praias e montanhas.
O articulista da TIME justifica-se pelo consumo de carne de cavalo na Europa e na Ásia. Mas não explica que o hábito, aliás inexpressivo, veio pela fome, em tempos de guerra. E ele não entende por que o público americano resiste em consumir a “iguaria”. Vou dar uma pista.
Quinze anos atrás, em viagem aos EUA, li reportagem no New York Times, com uma pesquisa/estudo sobre o relacionamento das pessoas com os animais. O título da matéria surpreendia: “Horse, the best friend”. O cavalo ganhava a posição de “melhor amigo do homem” porque não era penalizado com a resistência de pessoas aos latidos e mordidas de cachorros.
Dá para pensar em comer a carne desse amigão?
Chico Santa Rita é especialista em marketing político. Como hobby, cria e treina cavalos de enduro
TELEVISÃO
O AVANÇO DA RECORD
Emissora já chega ao topo no Ibope, compra a transmissão das Olimpíadas de 2012 e incomoda de perto a Rede Globo
Por LUIZ CHAGAS
A Rede Record faz valer cada vez mais o slogan que criou para si – “A caminho da liderança.” E ganha terreno em todas as áreas tradicionalmente dominadas e capitaneadas pela Rede Globo, aprontando-se para virar o jogo. Prova disso é que os bons resultados da Record em audiência deixaram de ser isolados e o primeiro lugar no Ibope já tem sido freqüente, como é o caso do programa Hoje em dia, levado ao ar diariamente entre oito e meia da manhã e meio-dia: a loiríssima Ana Hickmann, uma das âncoras desse programa, esteve na liderança no início da semana passada durante 53 minutos e, em outros 45 minutos, permaneceu empatada com Ana Maria Braga e Xuxa, ambas da Globo. Mais que isso. A escalada da emissora que promete cobrir em maio a vinda do papa Bento XVI ao Brasil não tem um horário cravado: inclui as manhãs com o jornal Fala Brasil, as tardes com O melhor do Brasil e as noites com a novela Vidas opostas seguida pelo Repórter Record. Na madrugada, a emissora ganha pontos com os filmes exibidos em Cine Maior e Supertela.
O avanço se dá, assim, em diversas frentes. No esporte, com a compra recente da Rede Guaíba, do Rio Grande do Sul (proprietária de uma emissora de rádio e de um jornal), a Rede Record assumiu o controle do Campeonato Gaúcho de Futebol – que se junta aos campeonatos baiano e catarinense. Ela ficará também com o Brasileirão de 2009, uma vez que a sua oferta de R$ 500 milhões é quase o dobro da quantia oferecida pela Rede Globo. Além disso, ganhou a exclusividade de transmissão dos Jogos Olímpicos de Inverno, no Canadá em 2010, e das Olimpíadas de Londres, em 2012, desembolsando algo em torno de R$ 60 milhões. No jornalismo, comenta-se que o assédio a profissionais globais passou por ofertas de até cinco vezes o salário que eles ganham atualmente. No terreno das novelas, a Record vem se destacando desde o remake de A escrava Isaura e agora acaba de colocar no ar Luz do sol, rodada no Rio de Janeiro com os ex-globais Paloma Duarte e Floriano Peixoto.
Enriquecer o cast das novelas é outro dos objetivos, e os atores Antonio Fagundes e Fernanda Montenegro estão entre os mais cortejados. A primeira-dama do teatro confirma o convite: “A Record me procura calorosamente, mas também tenho convite da Globo. Não se falou em valores em nenhum dos casos.” Na verdade, ela nunca ficou na Globo mais que o tempo de duração de uma novela porque prefere manter o controle de sua vida e não se ver subordinada a um calendário de programação. “Não faço leilão de minha pessoa, apenas mantenho o ano todo tomado com trabalhos em cinema e teatro”, diz Fernanda Montenegro. Ela diz, e a Record é só ouvidos.
Colaborou Celina Côrtes
Robô de guerra
Robôs equipados com munição pesada ecapazes de acertar alvos a quatro mil metros de distância viram a nova arma em conflitos internacionais
Por LUCIANA SGARBI
O mais novo soldado das tropas de Israel é do tamanho de uma televisão portátil e tão obediente como qualquer sargento. Chama-se VIPeR. O seu comandante é um controle remoto. É isso: esse novo recruta, munido da mais alta tecnologia bélica, é um robô - e com ele os israelenses esperam aniquilar os seus adversários, especialmente o grupo libanês xiita Hezbolá. Foram testes e mais testes, até que os pesquisadores das forças armadas de Israel concluíram pela viabilidade científica de um robô que funciona à distância e é pequeno o suficiente para não ser notado - ou seja, é difícil destruí-lo. Assim se chegou ao combatente VIPeR, que, com menos de 30 centímetros de altura e pesando 11 quilos, é mais eficiente que cinco soldados juntos. Explica-se: além de suas dimensões reduzidas, o robô é silencioso graças às suas esteiras duplas que se moldam a qualquer terreno: sobe em escombros, escala obstáculos com extrema rapidez e percorre túneis como um azougue. Em seu interior, um microcomputador faz a vez de cérebro, encaminhando para os sensores as informações necessárias para identificar e desarmar, por exemplo, minas espalhadas pelos inimigos.
Para ser controlado à distância, o robô tem uma diminuta câmera de vídeo que recebe sinais via satélite e repassa todas as imagens para as centrais militares israelenses - comandá-lo é tão simples quanto jogar um videogame, mas o seu poder de fogo não é nenhuma brincadeira de jogo eletrônico. No núcleo desse armamento, uma pistola automática de nove milímetros pode ser acionada apertando-se no controle remoto apenas um botão. Com sistema digital é possível metralhar o inimigo, ainda que ele esteja quatro quilômetros distante. "Diferentemente dos demais soldados, o VIPeR não erra o alvo nunca. Tem a fria exatidão de uma máquina", diz Tal Yeshaya, responsável pelo grupo Elbit Systems, que construiu o robô. Caso precise mandar uma base adversária aos ares, o VIPeR já sabe o que fazer: sorrateiramente ele instalará no local uma de suas granadas, sairá e enviará um sinal para a base indicando o momento da explosão. Missão cumprida.
Também em outros países crescem os testes com equipamentos capazes de guerrear através de controle remoto - e alguns deles já entraram em ação, como é o caso do Predator, aeronave americana não-tripulada que patrulhou silenciosamente os céus do Afeganistão transmitindo imagens ao vivo sobre a localização da artilharia dos talibãs. Agora, o inimaginável: das pranchetas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, surgiu o correspondente de guerra perfeito. Trata-se do Afghan Explorer, um repórter sobre rodas que se move por energia solar, usa sistema GPS para localizar qualquer lugar e tem o "cérebro" ligado à internet - ou seja, atualizado 24 horas por dia. Já os ingleses pensaram no espião ideal e estão desenvolvendo uma abelha mecânica com câmeras e microfone. Nesse ritmo, se um confronto mundial ocorrer é quase certo que ele se dará com a mesma comodidade com que se troca de canal na televisão - de controle remoto nas mãos.
PETROQUÍMICA
O QUE OS GIGANTES QUEREM DA IPIRANGA
PETROBRAS, ULTRA E BRASKEM FECHAM POR US$ 4 BILHÕES O MAIOR NEGÓCIO DOANO. COMO SEUS PLANOS AMBICIOSOS VÃO AFETAR A CONCORRÊNCIA?
Por FRANCISCO ALVES FILHO
O telefone tocou na sala de Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira, um dos acionistas controladores do Grupo Ipiranga e presidente da Federação de Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), na tarde de sexta-feira 16. Do outro lado da linha, um executivo do Banco Pátria, instituição paulista especializada em aquisição de empresas, tinha boas notícias. Confirmava a proposta formal de compra da Ipiranga pelas gigantes Petrobras, Ultra e Braskem. Ali começava a maratona de dois dias de reuniões para fechar o negócio, envolvendo cerca de 80 pessoas, entre sócios e executivos. No domingo, os números monumentais vieram a público: o Ipiranga foi vendido por US$ 4 bilhões (R$ 8,3 bilhões), numa das maiores transações já feitas no País.
Com 74 anos de existência, o Ipiranga é o segundo maior distribuidor nacional de combustíveis, com 4.240 postos. Também atua na área petroquímica. Em 2006, faturou R$ 31 bilhões e lucrou R$ 534 milhões. Tão grande quanto as cifras envolvidas no negócio foi a repercussão no mercado. Antes do anúncio oficial, as ações do grupo dispararam na Bovespa, um indício de uso de informações privilegiadas por pessoas participantes das negociações. É o chamado crime do colarinho branco. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já está atrás dos possíveis espertinhos. Outra questão importante é a concentração do mercado de distribuição de combustíveis no País. Com o negócio, a Petrobras passa a operar 880 postos Ipiranga no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Sua rede sobe para 7.080 postos e, com isso, passa a deter 37% do mercado. No Nordeste, a fatia chega a 41%. Teria poder, portanto, para determinar preços e fragilizar a concorrência. “Essa concentração pode ser prejudicial a concorrentes e consumidores”, avalia Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura. O presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, não vê motivo para alarme. “Ficamos com apenas 25% do negócio da Ipiranga”, afirmou, ao anunciar a transação com o presidentes da Braskem, José Carlos Grubisich, e do Grupo Ultra, Pedro Wongtschowski. O assunto será analisado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
A Petrobras investiu US$ 1,3 bilhão, a Braskem, US$ 1,1 bilhão, e o Ultra, US$ 1,6 bilhão (leia quadro). Na divisão do bolo, cada comprador ficou com uma fatia apetitosa. Cada um terá 33% da refinaria Ipiranga. A Petrobras e a Braskem serão sócias nos ativos petroquímicos (Ipiranga Química, Ipiranga Petroquímica e participação na Copesul), sendo que a Braskem será majoritária, com 60% das ações. Ao grupo Ultra coube a marca Ipiranga e os 3,4 mil postos de combustível do Sul e do Sudeste. É uma respeitável fatia de 15% do mercado de distribuição de combustíveis. Curiosamente, um dos principais motivos para os grupos nacionais arrematarem a rede Ipiranga foi impedir a entrada da estatal venezuelana PDVSA no Brasil. “Tínhamos várias motivações para fechar o negócio, entre as quais esta”, admitiu Maria das Graças Foster, presidente da BR Distribuidora, da Petrobras.
Já a Braskem aproveitou a deixa para ganhar musculatura em uma só tacada. Suas receitas líquidas crescerão 45%, para quase R$ 17 bilhões, e a geração de caixa dobrará para R$ 3,1 bilhões. “Ganhamos robustez para competir no mercado global”, disse Grubisich a ISTOÉ. “Com esse novo fôlego, poderemos acelerar nossos programas de investimentos no mercado local e ficar de olho em eventuais oportunidades no Exterior.”

ENTREVISTA COM RAUL REYES
FARC/IMPÉRIO DAS DROGAS
‘‘Não é hora de conflitos’’
Por HUGO MARQUES
É possível reconciliar um país dividido como a Colômbiae pôr fim à guerra? RAÚL REYES, chefe da Comissão Internacional das Farc, a guerrilha da selva, acha que sim
Em plena floresta, o chefe da Comissão Internacional das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, Raúl Reyes, fez uma pausa na função de líder da guerrilha mais ativa do planeta para responder a ISTOÉ, depois de três meses de negociações. Um pen drive com as perguntas passou por vários intermediários e países até chegar às “montanhas da Colômbia”, o lugar incerto de onde os guerrilheiros assinam todos os seus comunicados. O mesmo aparelho eletrônico retornou de avião ao Brasil com as respostas. Para chegar, fez um percurso que passou pela Europa. Nada foi transmitido por e-mail, para garantir a segurança de três guerrilheiros envolvidos na operação. Todos os cuidados, no entanto, são para fazer chegar uma entrevista que fala em pacificação. Como membro do secretariado do Estado-Maior Central da organização que reúne cerca de 20 mil combatentes, Reyes quer um processo de reconciliação dentro do território colombiano. Sem guerra.
ISTOÉ – Como as Farc avaliam as reeleições de Hugo Chávez na Venezuela e de Lula no Brasil?
Raúl Reyes – Avançamos ombro a ombro junto a outras experiências políticas de caráter popular que estão surgindo na América Latina. Trata-se de uma luta política antiimperialista, porque não queremos mais o jugo da dominação norte-americana. Nesse sentido, esses dois ilustres presidentes nos podem ajudar, como podem fazer muito mais que isso. São governos que, de maneira soberana, podem reconhecer em um dado momento que num determinado país surge uma nova realidade política. É isso o que estamos construindo na Colômbia. Já não é mais só um sonho, só um desejo.
ISTOÉ – Existem contatos políticos das Farc com o PT para reconhecer a independência do território controlado pelos guerrilheiros?
Reyes – No PT, muitos militantes sabem da justiça de nossa luta, mas outros não têm a mesma opinião. O que destacamos dessa entidade política brasileira é o conhecimento e o compromisso político com a causa dos direitos humanos na Colômbia. A solidariedade humanitária é uma bandeira de luta de caráter internacionalista. A dificílima situação dos direitos humanos em nosso país clama para que ela seja concreta e eficaz.
ISTOÉ – O que querem as Farc?
Reyes – Lutamos pela segunda, total e definitiva independência. Haverá um desenlace, claro. A América Latina está indicando isso. A classe dominante chegou ao topo em sua corrupção, decomposição, nível de violência e de prostração ante os EUA. Sobre essa crise, cavalga (Álvaro) Uribe (presidente colombiano). Mas ele não tem as rédeas. Na realidade, seu governo está caindo aos pedaços. Não lhe resta outro caminho a não ser renunciar. E a reconciliação do país poderá ser feita sem guerra. Essa é a melhor alternativa. As condições para isso estão amadurecendo aceleradamente.
ISTOÉ – Os militares brasileiros preocupam-se com a presença das Farc, a 20 quilômetros da fronteira. Existe risco de conflitos?
Reyes – A hora atual não é de conflitos, mas de busca conjunta de transformações que nos levem até a criação de pátrias livres, soberanas, integradas como irmãs. Essa importantíssima tarefa já começou. Basta olhar a Cuba Revolucionária, a Venezuela Bolivariana, a Nicarágua Sandinista, a Bolívia, o Equador. E, como não, o Brasil, cujo povo iniciou a conquista de condições de vida pelas quais sempre lutou, e também de forma admirável. Pouco a pouco, vamos nos reconhecendo como um mesmo e único povo latino-americano-caribenho.
ISTOÉ – Além do Imposto para a Paz, que cobra 10% dos milionários, as Farc estão levantando dinheiro com plantações de coca e com o tráfico de drogas?Reyes – Contra nós desde que iniciamos a luta pela tomada do poder, os grandes meios de comunicação se converteram em difusores de campanhas infames impulsionadas pelos EUA. Cunharam já há muitos anos o termo narcoguerrilha. E veja você agora quem está na administração pública. Nem o velho narcoparamilitar Uribe escapa. Por isso, em defesa do decoro da pátria, exigimos que esse indivíduo renuncie ao cargo que de maneira ilegítima e ilegal ocupa. Com que moral esse senhor ocupa o assento presidencial se a sua eleição e reeleição estão manchadas de sangue inocente?
ISTOÉ – Qual é a postura das Farc diante do tráfico internacional de drogas?Reyes – Primeiro, é preciso dizer que esse não é um problema militar que se resolva com armas. Desde que apareceu o narcotráfico, o Império o converteu em pretexto para manter a sua ingerência em nossos países. E, na Colômbia, o combate às drogas é uma das formas de violência oficial “made in USA” contra o povo. Usam como pretexto as plantas de coca para atacar grandes áreas campesinas com o fim de destruir esse tecido social, roubar-lhes as terras e abrir espaço para as transnacionais, especialmente norte-americanas. O fenômeno da produção, comercialização e consumo de drogas deve ser entendido como um problema social de grandes proporções.
ISTOÉ – Como solucionar o problema das drogas nas sociedades que a consomem?Reyes – Há muito tempo defendemos que o consumo de cocaína seja legalizado, pois é uma boa forma de cortar a jugular desse negócio que obedece às leis do mercado capitalista: se há demanda, alguém produz. Mas, como é um negócio que gera dividendos apenas um pouco menores que os do petróleo, os primeiros interessados em que seus lucros não caiam são os bancos, as empresas que fabricam os componentes químicos usados na produção e os traficantes.
ISTOÉ – Se a Colômbia reconhecer o caráter político das Farc, o país teria que se tornar mais socialista ou as Farc mais capitalista?
Reyes – O objetivo é a construção do socialismo. Um socialismo que não seja tipo imitação. Que leve em conta nossa história, tradições, costumes, idiossincrasias e cultura. Que o povo de maneira soberana seja o protagonista principal. O construtor de um sistema econômico que acabe com a conhecida história de uns poucos que acumulam sem limite porque exploram o trabalho dos outros arrebatando-lhes o fruto de seu suor.
ISTOÉ – Em que nível os produtos químicos que os EUA estão dando à Colômbia para a fumegação das plantações de coca está contaminando os rios da Amazônia?
Reyes – Esse veneno está sendo convertido em arma de guerra. É um dos componentes do Plano Colômbia, porque com ele buscam expulsar das regiões campesinas seus moradores. A Colômbia é o país do mundo com o maior número de exilados internos, pessoas expulsas de suas terras. A crise humanitária é gravíssima, o respeito aos direitos humanos é coisa do passado para o atual governo. Os males causados às pessoas de todas as idades, aos animais grandes e pequenos, à fauna, à flora e às águas, aos cultivos agrícolas têm a intenção de exterminar o tecido social de regiões imensamente ricas em diversos minerais para abrir espaço para as transnacionais norte-americanas e ao paramilitarismo de Estado.
ISTOÉ – Quais são as condições das Farc para trocar os presos nas montanhas por membros da guerrilha detidos na Colômbia e nos Estados Unidos?Reyes – O apoio político à realização desse evento vem crescendo. Esse apoio adquiriu contornos nacionais e internacionais, pois vários governos estão dispostos a servir de facilitadores. Agora, é óbvio que tudo isso está deixando o governo e seu presidente em dificuldades para seguir enganando, mentindo e dizendo que nós é que somos os mentirosos. Eles enganam a comunidade internacional, as personalidades dispostas a ajudar na troca, mas dizem que nós é que fazemos esse papel de enganar. Nós estamos prontos.
ISTOÉ – Quais os principais representantes das Farc que poderiam ser libertados nesta troca, no exterior e nos presídios da Colômbia?
Reyes – Temos Sonia e Simón Trinidad, que foram extraditados pelo mordomo fascista dos Estados Unidos na Colômbia. Também temos Rodrigo Granda, preso numa cadeia colombiana. A maioria dos nossos guerrilheiros bolivarianos não caiu nas mãos do inimigo porque estava em combate. Ao contrário, estava no cumprimento de missões de caráter civil, social, familiar, em tratamento médico, quando viajava para se encontrar com personalidades da vida pública do país ou de organizações internacionais. O tratamento que essas pessoas recebem é desumano. A perseguição aos familiares que as visitam, aos seus entes queridos, é uma forma de mantê-las em constante intimidação.
ISTOÉ – Que critérios poderiam ser usados na troca, já que alguns presos – como a ex-candidata a presidente Ingrid Betancourt, presa em 2002 – são considerados troféus por vocês?
Reyes – Já indicamos que a troca deve ser todos por todos, incluídos os três oficiais da CIA feitos prisioneiros quando o avião no qual cumpriam suas missões de espionagem e de inteligência militar na área de conflito foi derrubado. As prisioneiras e prisioneiros em nosso poder recebem o tratamento humanitário que permitem as circunstâncias do confronto. É óbvio que uma guerra não é um passeio turístico. É por isso que sempre dizemos que os fatores que originam o conflito se resolvem através da solução política, destacada como primeiro ponto em nossa plataforma para um governo de reconstrução e reconciliação nacional. Só que a ingerência dos Estados Unidos e a atitude apátrida e violenta dos que governam nosso país implantaram o terrorismo de Estado, que aplicam por meio do paramilitarismo e do narcotráfico. Essa forma violenta de governar tem seu destino marcado: o fracasso. Uribe na arena internacional está caindo como mosca no leite. Ainda que seja com diplomacia, não deixa de ser um passa-fora. Tudo porque ele está se convertendo numa espécie de Caim dos colombianos.
NOTA:NÃO ESQUECER A INTIMIDADE DAS FARC COM O TRÁFICO DAS DROGAS E CRIMES QUE INFERNIZAM O MUNDO.


O QUE OS MÉDICOS ODEIAM NOS HOSPITAIS
As carências, os pontos fracos e os erros mais irritantes na opinião de especialistas que lutam todos os de atendimento médico do país dias para salvar vidas nos centros
Por CELINA CÔRTES e MÔNICA TARANTINO

Ninguém conhece tão bem os problemas camuflados na rotina dos hospitais quanto os próprios médicos. Na luta para salvar vidas, eles muitas vezes se desdobram para superar esses obstáculos. E no Brasil, como se sabe, eles nunca foram poucos na área da saúde. ISTOÉ entrevistou alguns dos melhores especialistas do País em suas áreas para descobrir o que mais os incomoda nos hospitais e o que pode ser feito para melhorar o atendimento. Os problemas apontados são variados. Vão da falta de treinamento nas unidades de pronto-socorro ao descaso com a alimentação dos doentes. Situações raramente comentadas com os pacientes e seus acompanhantes, mas que devem ser alvo de muita atenção.
1 - incompetência no pronto-socorro
O atendimento no pronto-socorro determina a vida ou a morte, além das seqüelas que um paciente poderá ter. “Não suporto ver que os pronto-socorros brasileiros são nichos de médicos mal preparados e mal remunerados. Lá fora eles têm equipes treinadas e bem pagas”, afirma o cardiologista Sérgio Timerman, com a autoridade de quem trabalhou muitos anos em pronto-socorros e lidera debates e organizações internacionais de atendimento de urgência. No País são pouquíssimos os pronto-socorros nos quais os profissionais recebem treinamento específico, que corresponde, na aviação, aos exercícios de simulação feitos pelo piloto. O mais comum é ser atendido por um médico recém-formado e despreparado, que dá plantão apenas para complementar o orçamento. “Essa precariedade vai continuar se não houver regulamentação para a formação desses profissionais. Os conselhos de medicina e a Associação Médica Brasileira precisam olhar para esse problema”, diz Timerman. Para se protegerem, as pessoas devem se informar sobre os serviços ao seu redor.
2 - A restrição da tecnologia
O desafio do cardiologista paraense Silas Galvão Filho, 52 anos, é normalizar o ritmo do coração dos pacientes com arritmia. Seus principais aliados são um procedimento chamado ablação por cateterismo e o implante de aparelhos que regularizam os batimentos, os marcapassos e desfibriladores. Muitas vezes, esses equipamentos são o último recurso para viver mais. Mas isso não é suficiente para agilizar a liberação do tratamento pelos planos de saúde ou pelo governo. A maioria dos planos não paga as próteses. No SUS, a espera é de três a quatro meses. A fila começou depois de cortes nos procedimentos mais caros. Pode ser tempo demais. “A coisa que eu mais odeio é esse acesso difícil e demorado. Já vi pacientes terem morte súbita à espera dos aparelhos”, diz Galvão Filho, responsável pela clínica de Ritmologia Cardíaca do Hospital Beneficência Portuguesa. Os pacientes devem se inscrever em diversos serviços, entrar com ação na Justiça e pedir aos planos. Se for possível, o melhor é comprar. Os valores ficam entre R$ 15 mil e R$ 70 mil.
3 - a exigência de produzir mais
O conflito entre a política de aumento da produtividade dos médicos, que domina os hospitais, e o cumprimento das normas básicas de segurança pode ter conseqüências sérias. É o que incomoda o infectologista Renato Grinbaum, 42 anos, do Comitê de Controle de Infecção Hospitalar do Estado de São Paulo. Na corrida para elevar o número de cirurgias e receber os reembolsos correspondentes do SUS e dos planos de saúde, há hospitais enchendo o seu espaço físico de forma exagerada para atender cada vez mais gente. “Essa política interfere na segurança e no controle de infecções nos hospitais”, diz Grinbaum. Como? A redução de espaços atinge áreas cruciais, como aquelas reservadas aos procedimentos de esterilização de equipamentos. Os locais onde o paciente descansa depois da cirurgia também estão cada vez menores. Isso desobedece normas de vigilância sanitária e tem desdobramentos. Um dos mais graves é a execução parcial dos processos de esterilização. Como há princípios de desinfecção que não podem ser prescindidos, a corda arrebenta do lado mais fraco: o aumento de complicações pós-cirúrgicas e riscos de infecção hospitalar.
4 - o alto custo dos remédios
A médica carioca Mara (nome fictício) sente na própria pele os dramas de muitos pacientes para conseguir remédios de alto custo. Uma transfusão de sangue há três décadas infectou-a com o vírus da hepatite C. A doença evoluiu para um tumor no fígado, que foi retirado em uma cirurgia de sucesso feita em outubro passado, que extirpou 60% do órgão. Para garantir que o vírus não tome conta novamente do órgão, ela precisa tomar o remédio Peg-Interferon durante um ano. Do contrário, pode ter cirrose hepática, um novo tumor e até morrer. O Estado é obrigado por lei a fornecer o medicamento, mas o faz com uma morosidade que desrespeita a vida. “Depois da operação, entrei com o pedido do remédio. Fui informada de que só poderia recebê-lo um ano depois. Após muito stress, consegui em três meses. Mas sei de milhares de pessoas que não recebem e existem ações movidas contra o Estado por esse motivo.” Por causa do receio de sofrer represálias na liberação do remédio pelo qual batalhou tanto, ela prefere não revelar seu nome.

5 - o descaso com a comida
O cirurgião do aparelho digestivo Dan Waitzberg, 55 anos, dedica 15 horas do dia à medicina. Divide suas tarefas entre consultas, ensino, pesquisa e produção de artigos científicos. Chefe dos serviços de nutrição clínica do Hospital das Clínicas de São Paulo e de outros dois hospitais particulares, ele controla a dieta de 280 doentes internados. “Incomoda-me o descaso com a alimentação. Há doentes que ficam até três dias sem comer no hospital”, afirma. Isso eleva o stress e prejudica a recuperação. O desajuste aparece nas estatísticas. Entre 20% e 35% dos pacientes são internados com carências nutricionais, mas 50% ficam desnutridos dentro do hospital. Resta entender por que a desnutrição cresce sob o cuidado médico. Um dos motivos é a suspensão de exames e cirurgias em cima da hora. Outro problema é a inadequação da comida. Pesquisas mostram que até 40% das refeições voltam na bandeja. “Isso pode ser minimizado com uma conversa com o doente para tornar a comida mais aceitável”, diz Waitzberg. Ele aconselha os acompanhantes a ficarem atentos. “Perguntem ao nutricionista se há restrições, se podem trazer algo de casa e se há recomendação de vitaminas e fontes de proteína”, ensina.
6 - A relação fria com o paciente
As consultas da ginecologista e sexóloga Tânia das Graças Santana, em São Paulo, demoram mais de uma hora. Ela se empenha em dar a atenção que gostaria de ter dos seus médicos. “O que torna a saúde brasileira ainda mais debilitada é a falta de humanização no atendimento”, esclarece. “O acolhimento é ruim. Falta dedicação, carinho, boa vontade e paciência de médicos, enfermeiros e assistentes. O paciente é mal orientado e mandado de um lado para outro sem nenhum constrangimento”, afirma a médica. As pessoas, na opinião de Tânia, não devem aceitar passivamente esse tratamento. Se notarem pouco interesse do médico, em vez de ficar constrangidas devem fazer perguntas até entender o diagnóstico e o tratamento. E, se o médico comentar algo como “tenho visto muitos casos parecidos com o seu”, trate de falar dos seus sintomas e hábitos de vida. A tendência a generalizar aumenta as chances de diagnóstico incorreto.
7 - o drama da falta de dinheiro
O gasto mensal de um grande hospital público, como o Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro, deveria ser de pelo menos R$ 1 milhão. Mas os recursos são menores. “Temos R$ 600 mil mensais”, revela o médico Carlos Alberto de Sá, chefe de clínica médica do hospital universitário. A eterna contenção de recursos teve dois grandes efeitos colaterais. Um atingiu os recursos humanos. “Nos últimos 20 anos perdemos mais de 50% dos funcionários”, revela Sá. O outro, a qualidade do atendimento. “Não há programas de modernização dos diagnósticos, o que nos leva a praticar uma medicina dos anos 60. Nunca mais pudemos recuperar a capacidade plena de funcionamento. Vivemos uma situação de crise permanente. Fazer economia não casa com medicina”, desabafa o especialista.
Colaborou Greice Rodrigues