quarta-feira, 28 de março de 2007

CARTA CAPITAL DE 28 DE MARÇO

DESTAQUES

- A Record peita a Globo - Com gastos milionários, a emissora da Igreja Universal avança sobre audiência e anunciantes. O SBT de Silvio Santos já ficou para trás #
De volta a Trento - Papado - Com ações políticas e proclamações litúrgicas conservadoras, o Vaticano tenta inserir-se na configuração dos poderes do século XXI. #
A república distante - Instituições - O Banco Central recusa-se a acatar os princípios de transparência e promove encontros secretos com o mercado. #
A briga do aço - Siderurgia - Usina cearense é motivo de discórdia entre políticos e empresas.
Vácuo de poder - Terra de ninguém - Os seqüestros de juízes aprofundam a crise administrativa e social na qual Alagoas está mergulhada.
Otimismo diplomático - Entrevista - O economista Carlos Lopes, da ONU, aposta em um planeta multipolar.
TEXTOS

LANCES E APOSTAS
A CRUZADA DA RECORD
por André Siqueira
A emissora do bispo Macedo deixa o SBT para trás e incomoda a Rede Globo
Duas grandes campanhas publicitárias para promover novelas, no ar nas últimas semanas, simbolizam a nova fase da competição no mercado de televisão. O anúncio da líder Globo tenta recuperar a combalida audiência, para os padrões do horário, de Paraíso Tropical, hoje em torno dos 36 pontos. Assinada por um dos autores mais celebrados do canal, Gilberto Braga, a novela, em alguns dias, chegou a ter menos espectadores que O Profeta, o folhetim mediúnico das 6 da tarde. Já a Record comemora a boa estréia de Luz da Manhã, que conseguiu manter, no primeiro capítulo, a média de audiência da antecessora, Bicho do Mato (12 pontos, ou cerca de 660 mil domicílios na Grande São Paulo).
Caso Luz da Manhã mantenha o volume de telespectadores, será o sinal de que a Record conseguiu, definitivamente, fincar um pé no horário nobre (nobre?). Seria um avanço em relação a experiências anteriores de outras emissoras, que no passado alcançaram bons índices com uma novela, mas não tiveram fôlego para manter os mesmos patamares nas tramas seguintes.
Os investimentos da Record em telenovelas não são, nem de longe, o maior dos incômodos à Globo. A rede reerguida pelo bispo Edir Macedo adotou como norma reproduzir a estética da concorrente. A grade de programação é semelhante. Do jornalismo ao entretenimento, optou por roubar profissionais da emissora carioca a preço de ouro – a última a receber um convite foi a atriz Fernanda Montenegro. O atual campo de batalha são os eventos esportivos. A Record garantiu a exclusividade na transmissão das Olimpíadas de Londres, em 2012, e fez ofertas milionárias por torneios de futebol, no Brasil e no exterior.
A tática começa a abalar os índices da Globo. A Record consegue com freqüência a liderança matinal com o Hoje em Dia, ancorado pelo ex-repórter global Britto Jr., a modelo Ana Hickman e o cozinheiro Edu Guedes. E ainda estraga os domingos do apresentador Fausto Silva com picos de audiência do Tudo É Possível, com Eliana, e do Domingo Espetacular, de Paulo Henrique Amorim. Exemplos de programas capazes de bater a Globo, ainda que momentaneamente, não faltam à grade, até porque a capacidade de produção de conteúdo próprio da Record é de 85 horas semanais, o maior entre as emissoras, à exceção da rival.
Fora das telas, a disputa anda mais acirrada. Na esfera política, onde a Globo conta com tradicionais e poderosos aliados, a Record procura contrabalançar por meio do apoio da bancada evangélica no Congresso, que, embora tenha sofrido baixas nas últimas eleições, continua atuante. Teria a Globo, depois de mais de três décadas de liderança absoluta, encontrado uma rival à altura?

Lances e Apostas

E agora, Lombardi?
por Pedro Alexandre Sanches
O SBT perde terreno com o desgaste do personalismo de Silvio Santos
No início de março de 2007, Silvio Santos decidiu ensaiar uma volta triunfal ao seu hábitat natural: os lares brasileiros nas tardes de domingo, pelo filtro da tela do SBT. Na tarde do dia 18, no programa Tentação, ele brincava de atirar às “colegas de auditório” frases risonhas no estilo “Lombardi, nós vamos tomar o dinheiro delas”, “o que importa é nós ganharmos o dinheiro delas” e “pobre se contenta com qualquer coisa”.
Nem tudo voltou a ser como era antes, no entanto. Nos três primeiros domingos, o renascido Programa Silvio Santos foi derrotado em audiência não só pela Rede Globo como também pela Record. E se distanciou um pouco mais dos tempos idos em que o animador e empresário podia apregoar sua rede de tevê como a segunda maior do Brasil.
Em reservado, Senor Abravanel (seu nome verdadeiro) admite a colaboradores que os programas de animadores de auditório são coisa do passado e que ele próprio, Silvio Santos, não dá mais ibope. A volta à programação dominical, aos 76 anos, soa como uma tentativa de reconquistar espaço de acordo com o mesmo modelo que fez dele rei absoluto da programação popular na tevê, dono de um sofisticado complexo empresarial e a pessoa física que mais pagava Imposto de Renda no País no ano de 2000.
Os sinais de que o Sistema Brasileiro de Televisão já não consegue mais se alicerçar no modelo que criou como alternativa ao “padrão Globo de qualidade” se acumulam desde 2001. Foi quando, num soluço de popularidade que não voltou a se repetir, o reality show Casa dos Artistas conquistou audiência e repercussão explosivas e, fato incomum para Silvio Santos, causou comoção não apenas entre o público habitual das faixas C, D e E, mas também entre as chamadas classes A e B, quase sempre aparentemente refratárias à suposta cafonice do homem do Baú da Felicidade.
Duas imagens recentes ajudam a consolidar a impressão de que Silvio Santos vem sendo atropelado por transformações que vão além do mero avanço da Record. Uma delas, no fim de 2006, foi a inauguração do hotel de luxo Jequitimar, no Guarujá (SP), sob um investimento estimado em mais de 150 milhões de reais e tido como o primeiro empreendimento do Grupo Silvio Santos destinado às classes A e B.
A outra diz respeito ao apresentador Carlos Massa, o Ratinho. Hábil condutor de programas naquele perfil popularesco e sensacionalista que fez o esplendor do SBT dos anos 90, ele amarga um prolongado inferno astral dentro da empresa. Seus programas têm sido submetidos constantemente a alterações e cancelamentos.
Freqüentador assíduo do “ranking da baixaria na tevê” criado pela Câmara dos Deputados, Ratinho ultrapassava 30 pontos de audiência no Ibope no fim dos anos 90. Em janeiro de 2007, o “jornalístico” Jornal da Massa pelejava para vencer o desenho A Turma do Pica-Pau, da Record, na faixa de 6 a 8 pontos. Segundo diagnósticos internos, a imagem sensacionalista dos programas de Ratinho passou a afugentar o mercado publicitário, e ele se tornou uma fonte de faturamento negativo e prejuízos constantes para o SBT.
A conhecida instabilidade de Silvio Santos frente à grade de programação atinge ápices inéditos, e não afeta apenas Ratinho. O troca-troca de horários e formatos desestabiliza a tradicional Hebe Camargo e a emergente Adriane Galisteu e coloca as equipes do departamento jornalístico em estado de apreensão permanente.
Em dezembro passado, o departamento de divulgação foi extinto, e a determinação vigente até hoje é de que os profissionais da casa não concedam entrevistas. Sem equipe de divulgação, o SBT parou de informar publicamente os horários das atrações, e a situação prevalecia ao menos até a quinta-feira 22, às vésperas da estréia da nova programação, que, segundo o reclame exibido no ar, iria “fazer a concorrência tremer de medo”.
Para o sociólogo Sérgio Miceli, autor do ensaio A Noite da Madrinha, sobre Hebe Camargo, Silvio Santos ficou com um naipe de alternativas desgastadas. “Hebe tem audiências muito baixas, é uma sobrevivente dela mesma, assim como ele próprio. São dinossauros de um outro momento”, avalia.
Miceli atrela o ocaso de tais figuras ao desenvolvimento do País como um todo: “A sociedade brasileira está vivendo transformações importantes. O efeito do aumento de escolaridade não aparece imediatamente, mas é evidente que depois dele a tevê nunca mais será a mesma coisa, terá outros padrões de difusão”.
Um profissional envolvido nas recentes reformulações do SBT atesta que a rede dispõe de pesquisas que apontam uma relação direta entre esse aumento da escolarização e o declínio da programação estilo mundo-cão: se a escolaridade aumenta, cresce em proporção direta o grau de exigência do espectador. Silvio Santos também sabe disso, mas aceitar que há um SBT que está morrendo lentamente e um outro que espera para nascer significa, também, jogar para o alto várias décadas de reafirmação do modelo personalista idealizado por ele.
“Crescendo dentro de um fenômeno de urbanização e migração cidade-campo, Silvio recriava a quermesse rural, o jogo e a brincadeira”, analisa o sociólogo e pesquisador de comunicação Laurindo Leal Filho. “Com isso, auxiliava na ressocialização desses migrantes, diminuía o choque deles com a cultura urbana. Hoje, o processo migratório já não se dá mais daquela forma.”
A hesitação constante entre conservar e modernizar parece povoar em cada detalhe o SBT, tido por muitos funcionários como uma empresa exemplarmente moderna em termos trabalhistas – quem tem carteira assinada, por exemplo, recebe todo mês uma cesta básica, que é entregue em domicílio.
Se, por um lado, Silvio insiste nos programas de auditório copiados de matrizes em Miami e na América Latina, por outro, dá sinais de preparar a própria sucessão. Na comemoração dos 25 anos de existência da rede SBT, em agosto passado, afirmou que não estará presente nos próximos 25 anos e que as filhas é que ocuparão seu lugar. Ele tem seis filhas, entre elas Patrícia Abravanel, diretora do braço financeiro do grupo (o Banco Panamericano), e Daniela Beyrutti, recém-nomeada diretora artística do SBT.
Um clima de tensão geracional parece compor o pano de fundo do atual momento. Há poucos dias, foi demitido Orlando Macrini, tido há longa data como braço direito de Silvio. A ascensão de Daniela, por sua vez, tornou-se visível no ano passado, quando ela dirigiu a primeira edição da versão nacional do reality show American Idol, destinado, de acordo com a publicidade, a revelar “o novo ídolo do Brasil”.
O programa Ídolos incorporou para si dicotomias entre popularizar e sofisticar, modernizar e conservar. Começou destoando dos padrões do SBT, com uma linguagem de edição dinâmica e inteligente. Revelou de cara o “ídolo” juvenil Leandro Lopes, um cantor rebelde de cabelos vermelhos arrepiados (e logo apelidado de “Pica-Pau”), mas ele foi sendo diluído e domesticado no decorrer do programa. Vencedor, estreou em disco pela Sony & BMG, mas vendeu modestas 32 mil cópias, em nada parecidas às cifras de milhões da indústria fonográfica dos anos 90.
Revigorado em 2005, o telejornalismo do SBT transformou-se no ano passado em alvo preferencial da indecisão quanto a faixas de público e modelos de patrocínio a ser buscados. Contratada para conduzir o SBT Brasil, Ana Paula Padrão ficou à mercê da inconstância de Silvio. Com índices de audiência menores que os esperados, teve de trocar seis vezes de horário, antes de acertar sua saída do telejornal e trocá-lo por um programa semanal de reportagem, SBT Realidade, que deve estrear na segunda-feira 26.
Ana Paula diz que está feliz com o novo rumo, que consolida a determinação trazida desde os tempos de Globo, de abandonar o posto de apresentadora de telejornal. “É difícil explicar, fica até antipático, mas eu sou repórter, gosto da rua. Não entrei nisso para ser famosa. Surfei na onda midiática, mas dizer que adoro sentar maquiada na bancada e ser reconhecida em loja? Não, não gosto.”
Dizendo-se desinteressada das meras guerras de audiência, ela afirma torcer por um novo nivelamento entre as diversas redes de tevê do Brasil: “Acho muito bom que se democratize a comunicação, o acesso à informação, a distribuição de informação. Toda hegemonia é ruim. Será bom para todos uma divisão mais razoável, contanto que seja limpa”.
Com a saída de Ana Paula, Silvio tomou pessoalmente as rédeas do SBT Brasil, que passou a ser apresentado por Carlos Nascimento e Cynthia Benini (ex-Casa dos Artistas). Roteirizou e dirigiu pessoalmente a gravação piloto do novo jornal. A estréia foi desastrosa, oscilando entre 2 e 4 pontos de audiência.
No processo, trocou também o comando geral do núcleo jornalístico, entregando-o a Paulo Nicolau (egresso da Record), em meio a lances folclóricos: o intermediador da vinda de Nicolau teria sido Itamar de Oliveira, colaborador antigo e ex-adestrador de cães do patrão do SBT.
Outra que esteve à deriva por longo período foi a equipe do jornalista Carlos Amorim, que trabalhou no Fantástico e foi um dos criadores do Domingo Espetacular, da Record. O plano de criar um programa de entretenimento e informação para os domingos foi iniciado e interrompido inúmeras vezes desde o começo de 2005, até o cancelamento definitivo e a demissão de todos os profissionais envolvidos, em março de 2007. Entre eles estava Magdalena Bonfiglioli, repórter do SBT desde a primeira transmissão do canal, em 1981.
Por razões diversas, programas como a revista dominical que não houve e o SBT Brasil imaginado por Ana Paula Padrão se ancorariam mais na credibilidade junto ao público e aos anunciantes que na disputa ponto a ponto pelo Ibope. Divergiriam diametralmente, portanto, da obsessão por audiência dos tempos espalhafatosos de Ratinho e Gugu Liberato, que por vezes produziram episódios deprimentes, como o da falsa entrevista de dois supostos integrantes do PCC no Domingo Legal, em 2003.
Participariam de um lento distanciamento entre o SBT e as faixas C, D e E de público, que sempre o consagraram e que, por sinal, também se encontram em franca transformação, seja nos ditos “grotões”, seja nos centros urbanos. Esse deslocamento, como observa um ex-diretor do SBT, poderia fazer a rede cair para quarto ou quinto lugar no ranking das tevês.
Todos os fatores de mudança tropeçam, um por um, nos valores e na vaidade do Silvio animador e “artista”, que sempre andou lado a lado com o empreendedor certeiro que ele também tem sido ao longo das últimas cinco décadas.
Carioca da Lapa e filho de um comerciante que chegou a se viciar em jogos de azar, Silvio nasceu pobre, mas, contrariando o chiste que ainda comete com as “colegas de auditório”, não se contentou com qualquer coisa.
Antes de se tornar o homem do Baú, dos domingos e do SBT, foi camelô nas ruas, locutor de anúncios via alto-falante na barca Rio-Niterói, animador na Rádio Nacional, orador em comício político, apresentador de circo. A título de ilustração, sabe-se que até hoje usa uma fritadeira elétrica e um forno de microondas para preparar ele mesmo suas refeições, nos intervalos entre as gravações.
“O SBT é muito estruturado em cima de uma pessoa só, da visão de mundo e de sociedade de um homem de negócios formado na rua”, arrisca o especialista Laurindo Leal Filho. “Todas as decisões são tomadas a partir do feeling pessoal dele. Esse feeling dava certo porque era uma alternativa popular ao padrão Globo, mas talvez falte racionalidade, do ponto de vista de uma empresa de comunicação no mundo capitalista.”
Eis aí, enfim, o cabo de força hoje segurado numa ponta por Senor Abravanel, o empresário sofisticado, e na outra por Silvio Santos, o artista popular em pleno picadeiro. Enquanto luta consigo mesmo, nas arquibancadas e nos camarotes o público espectador também se encontra em pleno movimento.

PAPA BENTO XVI

Especial
DE VOLTA A TRENTO

por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa*
Com ações políticas e proclamações litúrgicas conservadoras, o Vaticano tenta se inserir na configuração dos poderes reacionários do século XXI
Jon Sobrino nasceu em Barcelona, Espanha, em 1938, mas desenvolveu toda a carreira religiosa em El Salvador, onde vive desde 1957. Foi um dos principais colaboradores do bispo Óscar Romero, assassinado por agentes da ditadura militar salvadorenha em 1980. Em novembro de 1989, o próprio Sobrino, por viajar para ensinar teologia na Tailândia, escapou de outro atentado, no qual militares abateram seis jesuítas e duas mulheres na Universidade Centro-Americana de San Salvador (UCA), da Igreja. “Toda a minha comunidade foi assassinada”, comentou ao ouvir a notícia.
Defensor da “igreja dos pobres” e da reafirmação do caráter também humano de Jesus, Sobrino foi homenageado no Fórum Internacional da Teologia realizado em Nairóbi, Quênia, em janeiro. Entretanto, o novo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – o estadunidense William Levada, sucessor do próprio Ratzinger no posto –, o acusa de “diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos grandes Concílios da Igreja Antiga” e tirar “conclusões não-conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua autoconsciência e o valor salvífico da sua morte”.
Essa punição com “silêncio obsequioso”, a primeira do atual pontificado, também foi aplicada ao franciscano brasileiro Leonardo Boff – suspenso por um ano, em 1985, e silenciado quando se preparava para participar da Eco-92, o que o levou à decisão de deixar a batina para poder se expressar com liberdade. De 1981 a 2005, o responsável direto pelo ex-Santo Ofício foi Ratzinger, que também advertiu o dominicano peruano Gustavo Gutiérrez, fundador da Teologia da Libertação, e condenou postumamente, em 1998, a obra do jesuíta indiano Anthony de Mello, autor de livros sobre espiritualidade de caráter ecumênico.
Jon Sobrino foi proibido de ensinar na UCA, da qual foi co-fundador, ou em qualquer instituição católica. O nihil obstat – aprovação da censura eclesiástica – foi retirado de suas obras, o que significa proibir que sejam reimpressas e vendidas por entidades eclesiásticas e recomendar aos fiéis que não as leiam. É o equivalente moderno de colocar um autor e suas obras no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos), abolido em 1966. O conservador arcebispo de San Salvador, Fernando Sáenz Lacalle, pediu a Sobrino que “seja dócil aos ensinamentos da Igreja”. Sáenz, membro do Opus Dei, queria há anos que o teólogo e seu “Centro Monseñor Romero” fossem silenciados.
Parece uma advertência aos bispos prestes a se reunir na V Conferência Episcopal Latino-Americana (Celam) a ser aberta pelo papa no domingo 13 de maio em Aparecida, para não ousar abrir debates sobre a Teologia da Libertação ou trazer à tona os movimentos que afloram a partir de suas bases..
Além das idéias da Teologia da Libertação e seus autores, Ratzinger também condena os que querem colocá-las em prática. É o caso do ex-bispo paraguaio Fernando Lugo, aposentado compulsoriamente em 2005, 20 anos antes da idade regulamentar de 75 anos. Em dezembro de 2006, renunciou ao sacerdócio para se candidatar à Presidência, apesar de receber ordens diretas para desistir e ser ameaçado com a excomunhão (leia A volta dos jesuítas, CartaCapital nº 433).
Ao mesmo tempo, o papa apóia e reforça prelados reacionários. Em março de 2005, o Vaticano recusou-se a acatar a demissão, pelo presidente Néstor Kirchner, do bispo Antonio Baseotto do cargo de vigário das Forças Armadas, para a satisfação da extrema-direita militar. Baseotto criticara o ministro da Saúde por ter defendido a descriminalização do aborto e o uso de preservativos, sugerindo que merecia “colocar uma pedra no pescoço e ser jogado ao mar”, alusão ao tratamento dado pela ditadura a muitos presos políticos.
Em fevereiro de 2007, o Vaticano nomeou Rúben Aguer, um dos bispos mais conservadores da Argentina, para o Conselho Pontifício de Justiça e Paz, como compensação pela recusa do episcopado argentino a elegê-lo para qualquer cargo relevante. Não é apenas mais um inimigo dos preservativos: Aguer atacou em público a revogação da anistia aos militares que violaram direitos humanos por Kirchner. Seminarista durante a ditadura do general Onganía, expulsou jovens de sua paróquia por lerem os documentos da Celam de Medellín, em 1968. Em 1976, já padre, delatou à recém-instalada ditadura do general Jorge Videla o colega Pablo Gazzarri, somado de imediato à lista dos “desaparecidos”.
Na Itália e Espanha, países nos quais a Igreja Católica tradicionalmente foi influente, Ratzinger escolhe momentos politicamente decisivos para cobrar de fiéis e de políticos católicos, com o maior alarde possível, posturas contra a legalização do aborto, da eutanásia, das uniões estáveis de fato e do casamento homossexual, questões que opõem a esquerda à direita.
Mesmo cardeais moderados, como Carlo Maria Martini, ex-arcebispo de Milão, mostram desconforto. “Creio que a Igreja devia dizer coisas que as pessoas entendam, não tanto ordens de cima às quais se tem de obedecer por terem sido impostas, mas coisas que se compreendam por terem um sentido, uma razão”, disse o cardeal quando o Vaticano exigiu de médicos, enfermeiras e farmacêuticos que alegassem uma “corajosa objeção de consciência” e se mobilizassem politicamente para desobedecer às leis quando essas os obrigassem a “atentados contra a vida humana” como praticar o aborto e a eutanásia ou fornecer anticoncepcionais. Martini, papabile que viabilizou a eleição de Ratzinger ao retirar a candidatura, defende os preservativos como mal menor ante o avanço da Aids e o aborto como legítima defesa da mulher cuja vida estiver ameaçada pela gravidez. Continua muito respeitado pelo episcopado.
O debate foi deflagrado pela exortação apostólica Sacramentum Caritatis, na qual reafirmou a excomunhão dos divorciados recasados e descreveu o segundo casamento como vera plaga hodierni contextus socialis. Em latim, a palavra-chave poderia significar também “chaga”, mas o bispo suíço Karl Josef Romer, secretário do Pontifício Conselho para a Família, esclarece que a tradução correta é mesmo “verdadeira praga do contexto social moderno”.
Isso em tempo de fundamentalismos, guerras, fome, epidemias e aquecimento global. Sem falar de pedofilia episcopal, praga comparativamente menor, porém mais ao alcance da competência e jurisdição do papa, que, apesar disso, prefere ocultá-la sob um pouco decente manto de silêncio e proteger os culpados.
“Sinto que se trata de uma tragédia do cristianismo em geral, a Igreja lutar nessas questões enquanto o mundo é tão terrível. Precisamos da força das igrejas para outras questões muito mais importantes para a humanidade, e para Deus também”, disse a CartaCapital o teólogo luterano norueguês Berge Furre, vice-presidente do comitê que atribui o Nobel da Paz.
A Sacramentum Caritatis recomenda muita atenção à beleza de paramentos e acessórios: para garanti-la, impõe o ensino de História da Arte nos seminários. Cobra dos padres que “compreendam e celebrem a missa em latim” (exceto nas leituras, no sermão e na oração dos fiéis) e usem o canto gregoriano em parte da liturgia, pelo menos. Reprova “a improvisação genérica ou a introdução de gêneros musicais que não respeitem o sentido da liturgia” e “a multiplicação de cumprimentos e expressões excessivas” – os abraços de fim de missa generalizados após o Vaticano II – em nome da “sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração”.
Há que admitir: do ponto de vista estético, nem tudo soa mal. Até ouvidos ateus poderiam agradecer a troca da Aeróbica do Senhor e do Vira de Jesus do padre-cantor Marcelo Rossi por um pouco de cantochão. Mas também é um largo passo para trás em relação à preocupação do Concílio Vaticano II e dos papas João XXIII e Paulo VI com retornar à simplicidade das origens, trocar forma por substância e tornar a liturgia mais humana, mais compreensível e mais adequada às necessidades dos fiéis.
É também um passo para longe da grande maioria dos fiéis nos setores e regiões nos quais a Igreja Católica ainda mostra alguma vitalidade. Isso inclui não só os simpatizantes da Teologia da Libertação, como também as massas atraídas pela Renovação Carismática, os jovens com novos conceitos de família e de dedicação à religião e, numericamente ainda mais importantes, os católicos da África, único continente onde o catolicismo tem ampliado sua difusão nas massas populares.
Para centenas de milhões de latino-americanos e africanos que representam há muito a grande maioria dos batizados na Igreja Católica e uma porcentagem ainda maior dos fiéis praticantes, uma missa incompreensível e que recusa a contribuição de suas culturas será o retrato de uma Igreja distante e extravagante, voltada para uma tradição elitista e eurocêntrica que não lhes diz respeito. Ao menos, não se pode acusar o papa de oportunismo: longe da propensão dos neopentecostais de recorrer a todos os recursos de marketing para atrair adeptos, ele parece disposto a deixar a hemorragia de fiéis matar a Santa Madre Igreja antes de ceder na defesa da tradição greco-romana e ocidental que defende com tanta intransigência e parcialidade de um Islã que não hesitou em rotular de “violento” e “irracional” (leia De volta às Cruzadas, CartaCapital nº 412).
É irônico que o mesmo Ratzinger esteja relacionado à excomunhão, em 1988, do idoso arcebispo francês Marcel Lefebvre e seu aliado brasileiro, o ex-bispo de Campos e colaborador da TFP Antônio de Castro Mayer. Haviam consagrado, sem autorização do papa, quatro bispos incumbidos de continuar a luta pela missa tridentina e contra as inovações litúrgicas do Concílio. Mas a verdade é que o cismático francês rompera o acordo explícito com Ratzinger pelo qual sua Sociedade São Pio X seria regularizada e o arcebispo teria direito a nomear um único bispo para liderá-la. Um general competente não admite indisciplina de um subordinado, mesmo se simpatiza com seus arroubos.
João XXIII e Paulo VI agiram como estadistas: combateram uma tradição mais que milenar para remar contra a corrente e tentar trazer um pouco mais de bom senso, justiça e esperança de paz a um mundo ameaçado por lutas de classes e confrontos entre as superpotências. João Paulo I parecia disposto a prosseguir na mesma direção, não fosse sua morte súbita e surpreendente.
Longe de continuar essa tradição, a eleição de Karol Wojtyla foi uma grande batalha da Guerra Fria, na qual a CIA usou de todos os seus recursos para favorecer a eleição de um polonês conservador do qual podia esperar a continuidade de sua luta contra o comunismo e muita disposição para reprimir a Teologia da Libertação.
Quando o jovem Ratzinger ainda militava na juventude hitlerista, mas muitos de seus superiores já negociavam com o Vaticano a fuga para a América Latina, Stalin zombou de Pio XII por sua pretensão a opinar na partilha da Europa: “Quantas divisões tem o papa?” De fato, a pitoresca Guarda Suíça não conta no jogo de poder. Hoje, como em 1945, nada pode fazer para impor a vontade do papa à Itália ou a qualquer outra nação. Apesar disso, Stalin subestimava o Vaticano, cuja contribuição para o colapso do bloco soviético, mesmo sem ter sido o fator decisivo, não foi desprezível.
A eleição do ideólogo conservador Joseph Ratzinger encaixou-se às mil maravilhas na nova configuração de poderes reacionários do século XXI. Retorna à tradição e à religião como armas de guerra e como instrumentos de dominação de combate às transformações sociais, como fazem Bush júnior, Berlusconi, Aznar, Bin Laden ou o aiatolá Khamenei (mas não Tony Blair: apesar de unir-se à invasão do Iraque, tem um discurso moderno e não invoca a religião).
A capacidade de Ratzinger de cultivar radicalismos, porém, é bem menor que a desses concorrentes, para não falar dos papas do passado. Como atesta a demografia da maior parte dos países da Europa e das Américas formalmente católicos, a crescente aceitação social do divórcio e da homossexualidade e mesmo o relativo sucesso das campanhas oficiais contra a Aids, a maioria dos batizados pouco se interessa sobre o que o papa pensa de sua vida sexual. Hoje, o Vaticano também carece de tropas no campo das idéias, ainda mais depois de banir ou silenciar seus pensadores mais capazes de entender a realidade.
*Colaborou Phydia de Athayde

A Semana

A esponja tarda, mas não falha

por Mino Carta
O processo de impeachment de Collor não foi farsa, como diz ele, e sim mais um ato da interminável tragicomédia brasileira
Sugerem meus botões: deixe-se inspirar pelo fantasma de Voltaire. Fernando Collor diz que o processo do seu impeachment foi uma farsa. Poderia ser, mas não foi. Poderia ser, se dependesse da mídia nativa, ou melhor, dos donos da mídia nativa.
A revista IstoÉ, que já teve seus dias de glória, em outubro de 1990, sete meses depois da posse de Collor na Presidência da República, publicou uma reportagem de capa, de autoria de Bob Fernandes, para relatar as mazelas da eminência parda do governo, o falecido PC Farias.
Houve esforço concentrado para impedir a saída da reportagem. A operação de início foi levada a cabo por um jornalista envolvido em manobras escusas. Depois, por personagens graúdos. Na qualidade de diretor de redação, ao jornalista que me procurava em sua tentativa de sedução, apontei a porta da saída. Os graúdos alvejaram o próprio dono da Editora Três, Domingo Alzugaray, com crescentes propostas em dólares. Domingo recusou, ponto a favor dele, e que ponto.
A reportagem saiu. Surpreendo os leitores ao registrar que o resto da mídia silenciou a respeito? Obviamente, não. Nem um único, escasso, remotíssimo eco. Collor ainda parecia muito conveniente na Presidência.
Um ano e meio após, em março de 1992, a revista Veja saiu com uma longa entrevista do irmão do presidente, Pedro. Desfiava contra Collor e PC Farias todas as acusações alinhadas por Bob Fernandes um ano e meio antes. Só havia uma novidade, até então escondida em uma gaveta de criado-mudo (me apresso a esclarecer), os supositórios de cocaína.
Collor dera para ficar incômodo, PC Farias cobrava demais pelos pedágios. Chegara o momento de dar um “chega-pra-lá”. Grande estardalhaço em torno da CPI montada em Brasília, desta vez, está claro, com o apoio maciço da mídia. Digo, dos donos da mídia. Faltavam, porém, as provas do formidável caso de corrupção, e a despeito da presença na ribalta das pernas bailarinas da mulher de Pedro Collor, tudo tendia a ficar no “elas por elas”, para o sossego geral da nação. O presidente teria entendido o recado e aprendido a lição.
Mas eis que surge em cena, de novo, a IstoÉ. Para atrapalhar. E traz as provas da ligação entre a Casa da Dinda e PC Farias, fornecidas pelo motorista Eriberto aos repórteres da sua sucursal de Brasília. Publicações como aquela IstoÉ, ou a CartaCapital de hoje, só servem mesmo para incomodar o poder, onde quer que se manifeste. Nem por isso, em meados de 1992, foi possível sustar o processo. E o enredo evoluiu para o desfecho inevitável, a queda de Collor.
Não foi o entrecho de uma farsa, e sim, permito-me dizer, mais um ato da interminável tragicomédia encenada no Teatro Brasil, encaixada à perfeição dentro da história da chamada redemocratização (redemocratização?). Pequena parte, de verdade, da peça estarrecedora encetada há cinco séculos pela própria descoberta, atribuída a um vento que jamais soprou.
Anoto, de todo modo, que o protagonista daquele ato da tragicomédia, sempre e sempre destinada a enganar a platéia em proveito dos seus autores, foi recebido em palácio pelos sorrisos do presidente Lula, sem detrimento da pompa que o cenário recomenda. Esponja sobre o passado. Sobre a corrupção collorida como se dá com os crimes cometidos pela ditadura dos gendarmes, os estrelados de farda chamados a fazer o serviço sujo. Percebem a eterna tragicomédia? Os meus botões, entre atônitos e perplexos, perguntam: não é este o melhor dos mundos?
Lembro-me de debate da Globo, vésperas do segundo turno do pleito presidencial de 1989. Lula acondicionado dentro de um terno de corte improvável, acuado pelas invectivas do senhorzinho alagoano, eventualmente roxo em certas porções do corpo, certamente nas faces acaloradas. Dezoito anos depois, sorriem lado a lado nas primeiras páginas. Pangloss, aquela personagem de Voltaire, não conseguiria empurrar sua imaginação até este ponto.
A Semana

Ação e reação a Waldir Pires

por Redação CartaCapital
Às vésperas de mais um aniversário do golpe, o ministro volta à mira
Não é por acaso que, às vésperas de mais um aniversário do golpe de 1964, o nome de Waldir Pires, integrante do primeiro escalão do governo Lula e ex-integrante do primeiro escalão do governo João Goulart (apeado do poder pelos militares em 31 de março daquele ano), seja jogado no turbilhão da reforma ministerial armada às duras penas.
Não terá sido também por acaso que Pires assumiu o Ministério da Defesa, em substituição ao vice-presidente, José Alencar, exatamente no dia 31 de março de 2006. Talvez queiram tirá-lo do lugar, um ano depois, na mesma e emblemática data.
Um dos raros políticos a permanecer na cena política, oriundo do período imediatamente anterior à ditadura militar, ele é puxado para o redemoinho das especulações a reboque da chamada crise do “apagão aéreo” que se arrasta há quase seis meses.
Waldir Pires assumiu um ministério anêmico. As três forças armadas agiam, por meio dos comandantes, como se aquele ministério, criado no governo Fernando Henrique Cardoso, não existisse. Até então, a agenda dos ministros que o antecederam era preenchida por solenidades devidas ao cargo. A rigor, as promoções e as nomeações para os comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica eram decididas de forma autônoma nos quartéis sem qualquer ingerência do poder civil.
O ambiente não era fácil. Basta lembrar que, naquele mesmo 31 de março de 2006, o general Francisco Albuquerque, comandante do Exército, distribuiu uma Ordem do Dia, de incomparável provocação. Foi uma espécie de nota de “más-vindas” ao novo ministro da Defesa. Albuquerque enalteceu o movimento que derrubou o presidente Goulart, em 1964. Para ele, insere-se na história do Brasil como um dos “valores imutáveis” do Exército.
Indiferente a isso, o ministro-cassado e exilado durante a ditadura que Albuquerque elogiava – continuou chamando o golpe militar de golpe militar. Deu um piparote no subordinado ao lembrar que a legalidade estava com o governo deposto.
Foram várias as crises desde então. A situação agravou-se a partir da queda do avião da Gol. Pires, tal como era da sua função, tomou as rédeas do episódio. O comando da Aeronáutica não gostou da intervenção.
A Aeronáutica, principal atingida pelas decisões, não digeriu a perda de controle da aviação civil. E criou obstáculos. Estancou, por exemplo, a admissão de controladores de vôos civis. Hoje, são cerca de 2 mil, dos quais somente 400 não usam farda. Na mesma seqüência, às vésperas da transferência de responsabilidades e funções do Departamento de Aviação Civil para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), autorizou a duplicação de freqüência de vôos no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

A Semana
Muda o PIB, o Brasil não

por Redação CartaCapital
O IBGE revisou a metodologia. O País cresceu um pouco mais, desde 1996, mas os investimentos foram menores
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revisou os dados do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro de 1996 a 2005. Trata-se de um procedimento costumeiro, em países civilizados, para aperfeiçoar a medição do que a nação realmente produz. Há dados positivos. Na média, nos três primeiros anos do governo Lula, o crescimento do PIB subiu de 2,6% (pela metodologia antiga) para 3,2%. Nos três últimos anos de Fernando Henrique, também houve melhora: de 2,5% para 2,8%.
Houve uma reavaliação para cima dos valores do produto, que cresceu 10,9%, em 2005, para 2,148 trilhões de reais. O lado positivo é que a relação Dívida/PIB caiu de 50% para 45,7%, em 2005. É importante, por ser um dos indicadores que mostram a solidez das contas públicas.
De outro lado, como o PIB aumentou, para cumprir a meta de superávit primário (receitas, menos despesas, antes do pagamento dos juros) de 3,75% neste ano, o governo terá de economizar 9 bilhões de reais a mais. Isso já descontado o 0,5 ponto destinado ao Projeto Piloto de Investimentos (PPI). Contudo, ponderou a LCA Consultores em relatório a clientes, se caiu a relação Dívida/PIB, não haverá, em tese, necessidade de se apertar mais os cintos.
Um fato negativo foi a revisão para baixo da taxa de investimentos da economia, em todos os anos que o PIB foi recalculado. Isso preocupa o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Em 2005, por exemplo, caiu de 19,9% para 16,3% do PIB. Internacionalmente, o nível de um país que cresce de forma sustentada é de 25%.
Não faz sentido comparar com a melhora de 0,6 ponto da era lulista com 0,3 no último triênio da gestão fernandista. Não leva a nada. Na vida real, tudo fica como está. A não ser a constatação de que, mesmo com as novas contas, o País cresceu, no período, abaixo da média mundial.

A Semana
Especulações em marcha

por Redação CartaCapital
A direção da Telecom Italia desmente a intenção de vender ações paraa espanhola Telefónica
O escândalo de espionagem e o rombo financeiro deixado pela administração do empresário Marco Tronchetti-Provera tornaram a Telecom Italia alvo constante de especulações de toda ordem. Na terça-feira 20, o atual presidente do grupo, Guido Rossi, foi obrigado a vir a público desmentir os boatos de que a espanhola Telefónica será acionista da empresa.
Os boatos espalham-se porque a Olímpia, ligada à Olivetti de Tronchetti-Provera e uma das maiores acionistas da Telecom Italia, não esconde a intenção de se desfazer de suas ações na operadora de telefonia.
Segundo Rossi, as negociações com os espanhóis têm por objetivo firmar parcerias em áreas específicas e não envolvem discussões sobre a venda de ações. Rossi também rebateu as críticas quanto à estratégia atual da companhia. “O plano trienal de recuperação foi muito bem-recebido por investidores e analistas”, escreveu Rossi, em comunicação interna ao board. Uma das decisões diz respeito diretamente ao Brasil. A atual diretoria deixou claro que não pretende vender a TIM no Brasil, anúncio que agradou ao governo de Romano Prodi, que visita o País a partir da segunda-feira 26.
As disputas na maior companhia telefônica italiana acirraram-se em 9 de março, quando a empresa reduziu as previsões de crescimento da receita e dos lucros pela segunda vez em três anos. Justificou as novas projeções pelo clima de acirrada competição e pela pressão dos órgãos reguladores para a queda das tarifas.
Diretores levantaram dúvidas sobre a eficácia do plano de Rossi para elevar os lucros da empresa, por não contemplar um corte substantivo de despesas. Além disso, reclamam de falta de detalhes da incursão internacional da Telecom Italia.
Na correspondência ao board, Rossi se disse “estupefato” com a reação dos diretores. “A Telecom Italia e a Telefónica ainda nada negociaram, apenas identificaram possíveis áreas de cooperação”, escreveu o presidente. E esclareceu que a estratégia foi minuciosamente explicada no comitê estratégico da companhia. Na sua avaliação, as queixas dos diretores indicam que “a empresa passa por um período difícil”. A guerra de bastidores não é irrelevante. Em disputa, o domínio global no setor de telefonia.
A Semana
O negócio de 4 bilhões de dólares

por Redação CartaCapital
O consórcio formado por Petrobras, Braskem e Ultra leva a Ipiranga. A operação aponta para o futuro do setor
A aquisição da Ipiranga pelo consórcio Braskem-Petrobras-Ultra, anunciada na segunda-feira 19, é considerada a maior negociação entre empresas brasileiras. Valor da compra: cerca de 4 bilhões de dólares. O acordo, que engloba operações nos setores petroquímico, de refino e distribuição de combustíveis, ganhou corpo no segundo semestre do ano passado e botou fim a uma especulação que durou anos: quando a Ipiranga mudaria de mãos? Fazem parte da empresa uma rede de postos, a Companhia Petroquímica do Sul (Copesul) e a Refinaria Ipiranga.
Segundo o contrato, o Grupo Ultra ficará com a rede de distribuição de combustíveis da Ipiranga nas regiões Sul e Sudeste (a marca será mantida). A Petrobras passa a deter a rede de distribuição no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A bandeira Ipiranga poderá ser usada por até cinco anos e, aos poucos, haverá a migração para BR Distribuidora. Na petroquímica, a Braskem leva 60% da Copesul e a Petrobras, os outros 40%. A Refinaria Ipiranga será dividida em três partes iguais.
Apesar de vultosa, a operação quase foi ofuscada por uma polêmica no mercado de capitais. Existe a suspeita de que investidores usaram de informação privilegiada para comprar ações da Ipiranga na semana anterior à venda. O volume de papéis comercializado foi bem acima da média. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) abriu processo e já chegou a alguns possíveis nomes envolvidos no uso ilegal de informação. O caso será investigado e, se confirmada a fraude, os investidores poderão ser punidos, além de ter de devolver o dinheiro obtido com o lucro para não prejudicar os demais acionistas. A Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados também quer explicações sobre a transação.
Em entrevista a CartaCapital, José Carlos Grubisich, presidente da Braskem, defende a investigação. E comemora a importância da operação:
CartaCapital: O que significa a aquisição para a Braskem?
José Carlos Grubisich: É um marco na história da empresa, significa que o esforço no sentido da nossa vocação global começa a ganhar corpo. E o melhor, sem alterar o perfil de endividamento da empresa. A receita líquida vai aumentar 40%, para quase 8 bilhões de dólares. O Ebitda (lucro bruto menos as despesas operacionais, excluindo-se destas a depreciação e as amortizações do período) passará de 750 milhões de dólares para cerca de 1,5 bilhão de dólares. A Braskem não fala mais em gestão de dívida. Todo o passivo vence em um prazo médio de 15 anos. Hoje, nosso assunto é o crescimento e o perfil internacional.
CC: Quais são os investimentos previstos?
JCG: Para 2008, temos um projeto em fase de implementação em Paulínia (SP), em parceria com a Petrobras, no valor de 300 milhões de dólares. Serão outros 700 milhões de reais de investimentos nas nossas fábricas para modernizá-las e aumentar a produção. Outros dois projetos, na Venezuela, chegarão a quase 3 bilhões de dólares, em parceria. Todas essas operações terão reflexo entre os nossos clientes brasileiros. Vamos produzir a um custo mais baixo e com mais qualidade.
CC: Como a suspeita de informação de bastidor afeta a negociação?
JCG: Tomamos todas as providências ao longo do processo, com a assinatura de acordos de confidencialidade para que nenhum tipo de informação vazasse. Além disso, temos um código de conduta dentro da Braskem. Não estamos preocupados. Nossas ações só tiveram alta na segunda-feira 19, dia do anúncio da aquisição. Antes disso, não houve nenhum tipo de movimento. Se houve uso indevido, é preciso que haja uma investigação e punição, se for o caso.

A Semana

Surpresas e espantos

por Redação CartaCapital
O presidente segue com as mudanças no primeiro escalão
O presidente Lula protelou tanto a escolha do novo ministério e recusou-se (no que agiu corretamente) a ser pautado pela imprensa a ponto de suscitar a impressão de que se esmerava em selecionar a equipe. Não foi bem assim.
Depois de se ver obrigado a desistir da nomeação do deputado paranaense Odílio Balbinotti para a Agricultura, por conta dos processos judiciais contra o parlamentar, Lula optou por nomear Reinhold Stephanes, que ocupou a Previdência no governo Fernando Henrique Cardoso. No caso de Balbinotti, o constrangimento poderia ter sido evitado com uma simples consulta a programas de busca na internet.
Stephanes é uma indicação do governador Roberto Requião e da ala paranaense do PMDB, disposta a manter o posto após Balbinotti sair do páreo. O também deputado não conta com a simpatia dos ruralistas. A bancada rural no Congresso tentou, até o último minuto, emplacar outro nome para a pasta, Moacir Micheletto, preferido do ex-ministro Roberto Rodrigues e do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi. Para garantir a nomeação, Lula contou com a intermediação do presidente do PMDB, Michel Temer. Ele se reuniu com a bancada ruralista, na quinta-feira 22, e prometeu que o grupo será ouvido.
O novo ministro é réu em uma ação popular por improbidade administrativa por conta do período em que ocupou a presidência do Banestado, o Banco do Estado do Paraná. Nada que se assemelhe à situação de Balbinotti, acusado de falsidade ideológica em um processo sigiloso do Supremo Tribunal Federal. Stephanes alega ter sido citado no processo apenas por ocupar a presidência do banco, instituição envolvida em remessas ilegais.
Lula também definiu o ex-jornalista Miguel Jorge, vice-presidente do Grupo Santander, como o próximo ministro do Desenvolvimento. A escolha é reveladora: um executivo de um banco no comando de uma pasta, em tese, ligada aos interesses do setor produtivo.
Miguel Jorge vai assumir no lugar de Luiz Fernando Furlan. Mas não foi fácil acertar. Antes, o presidente havia convidado outros empresários, como Abilio Diniz, Jorge Gerdau, além do executivo Maurício Botelho. Todos recusaram sob a alegação de impedimento profissional ou, como no caso de Gerdau, de ter contratos com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Falou-se no consultor Antoninho Marmo Trevisan, mas não se sabe se ele foi efetivamente convidado. Amigos dizem que Trevisan só se sentiria inclinado caso lhe fosse oferecido o Ministério da Educação.
A Semana

Chapa-branca ou canal público?

por Redação CartaCapital
“Por favor, quando quiser falar de tevê pública agora, pergunte ao Gilberto Gil”, irritou-se Costa
Televisão pública ou estatal? Às voltas com a confusão conceitual, a proposta de criação de um Canal do Executivo, formulada pelo Ministério das Comunicações, expôs divergências no governo. Irritado com a repercussão negativa do projeto, o ministro Hélio Costa bradou em defesa própria: “Não tem ninguém querendo fazer tevê estatal, não tem ninguém querendo fazer culto à personalidade”. Estaríamos, então, diante de uma tevê pública? Parece que não é bem assim.
“A tevê estatal presta serviços institucionais à população e apresenta o ponto de vista do governo. A tevê pública é um espaço da sociedade, da diversidade cultural e de pontos de vista, e as emissoras são mantidas tanto pelos governos como pela iniciativa privada”, define Orlando Senna, Secretário do Audiovisual, do Ministério da Cultura. O projeto de Costa seria ampliar a tevê estatal.
O presidente da Radiobrás, Eugênio Bucci, é outro a explicitar as contradições da proposta. Em entrevista ao Terra Magazine, ele disse: “Às vezes, se fala que vai ser uma rede para externar visões do governo. Outras vezes se fala que é uma emissora de conteúdo tipicamente de uma tevê pública, o que não coaduna com a primeira informação”.
A exemplo do ocorrido nas discussões sobre a escolha do padrão de tevê digital, o projeto gerou atritos entre Costa e o Ministério da Cultura, que mantém um Fórum Nacional de TVs Públicas. “Eu não falei de conteúdo, de quem vai fazer a programação. Quem quer falar de tevê pública, e eu não sei quem lhe deu essa atribuição, é o Ministério da Cultura. Fique com eles, estou passando (essa competência) de papel passado”, declarou, com a habitual delicadeza. “Por favor, quando quiser falar de tevê pública agora, pergunte ao ministro Gilberto Gil. Não é mais comigo”, completa Costa.
Diante da confusão desencadeada pelo ministro, cabe ao presidente Lula definir se vai querer uma emissora chapa-branca ou se vai investir na real estruturação de uma rede pública.
Seu País

A República distante

por Márcia Pinheiro e Sergio Lirio
O Banco Central recusa-se a acatar os princípios de transparência e promove encontros secretos com o mercado
Quinta-feira 15 e sexta 16. Dois diretores do Banco Central encontraram-se, sigilosamente, com executivos de instituições financeiras para discutir economia. Foram três reuniões em São Paulo (escalonadas de duas em duas horas, a partir das 11 da manhã) e uma no Rio, nas sedes regionais do BC, prédios públicos. Estavam presentes 20 participantes, em cada encontro, aproximadamente, o que em um cálculo rápido daria 80 privilegiados, que foram se atualizar sobre as planilhas dos representantes do BC: o diretor de Política Econômica e Estudos Especiais, Mario Mesquita (ex-ABN Amro e ING), e o diretor de Política Monetária, Rodrigo Azevedo (ex-Credit Suisse First Boston e Garantia). O presidente do BC, Henrique Meirelles, compareceu somente ao evento no Rio, mas não falou.
Cento e dezoito anos depois do gesto do marechal Deodoro da Fonseca, proclamando a República, eternizado em quadro do pintor Benedito Calixto, uma série de instituições brasileiras recusa-se a entrar na era da República. Falar em valores republicanos, nos dias de hoje, causa urticária em meia dúzia de aclamados pensadores e escribas da vida cotidiana, como se o conceito tivesse perdido o sentido.
Seria bom que os críticos do debate sobre o republicanismo no Brasil e os que acham moderno grafar estado com letra minúscula consultassem os ideólogos que moldaram a civilização ocidental. Encontrariam, por exemplo, um ensinamento de Montesquieu, na obra O Espírito das Leis, de 1745: “Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte, trata-se de uma Aristocracia”.
A quem serve o poder soberano do BC brasileiro, cuja autonomia de fato não parece suficiente aos donos do dinheiro? As reuniões com agentes do mercado financeiro falam por si. Mais do que negar os preceitos de um Estado participativo e forte, comprometido com o interesse público, os convescotes revelam o quanto, no Brasil, o público e o privado confundem-se a ponto de não se poder enxergar a linha divisória entre ambos.
Oficialmente, as reuniões nem existem. Não constam da agenda do BC. Tampouco os resultados são revelados à imprensa. Trata-se de uma festa para poucos, em que as práticas de democratização da informação passam ao largo. Segundo o assessor de imprensa do BC, Jocimar Nastari, a não divulgação das agendas é um procedimento que visa coibir a especulação do mercado financeiro. Um comunicado prévio, argumenta, daria margem a ruídos nos negócios. “No caso, não é preciso transparência. Ela se dá por meio dos (breves) comunicados após a reunião do Copom, da Ata do encontro e dos relatórios trimestrais de inflação. “É o arcabouço legal do regime de metas de inflação”, afirma.
Não é de hoje que tais encontros acontecem. Os eventos são trimestrais. Em 2006, por exemplo, ocorreram em 20 de fevereiro, 8 de junho, 21 de agosto e 22 de novembro. Como o mercado financeiro não é exatamente composto por ingênuos, fica a dúvida. Por que os saraus restritos a economistas e gestores de instituições financeiras?
A alegação, ainda oficial, é que, das reuniões, saem dados concretos para que o BC redija o relatório trimestral de inflação. Mas e o setor produtivo? E os economistas das universidades? Ou seriam os últimos incapazes de prover o BC de análises consistentes? É relevante lembrar que a autoridade monetária já dispõe de um canal de comunicação com o mercado, por meio da Gerência Executiva de Relações com Investidores (Gerin), cuja função é compilar, semanalmente, entre economistas de bancos, expectativas sobre os mais diferentes preços da economia.
Pois as reuniões ocorridas em São Paulo e no Rio foram ricas em percepções e informações. Pena que ninguém, a não ser o mercado, teve acesso às discussões. A mídia sistematicamente ignora tais eventos, exceção feita às agências de notícias on-line, cujos clientes são os próprios bancos e corretoras. CartaCapital ouviu alguns dos presentes nos encontros, que não quiseram ser identificados.
Nas exposições iniciais, os diretores do BC Mesquita e Azevedo disseram estar o País menos vulnerável, com reservas internacionais sólidas (acima de 100 bilhões de dólares), mas insuficientes para ter tranqüilidade. Recado dado e assimilado: o BC vai manter a política agressiva de compra de dólares no mercado. Ou seja, a moeda não cairá abaixo de 2 reais. Afirmaram ainda que a alta recente da inflação foi pontual, mas cabe à autoridade monetária “não deixar o repique se espalhar para os demais preços da economia”. Leia-se: quem apostava em queda de meio ponto porcentual da taxa Selic na próxima reunião do Copom saiu convicto de que ela cairá não mais que 0,25 ponto.
A seguir, cada representante de banco foi convidado a fazer uma avaliação da economia. Grande parte mostrou preocupação com o cenário de médio prazo. Acham, os economistas, que a demanda continuará forte, com aumento do crédito e do consumo, e que os investimentos serão insuficientes para garantir um crescimento de bom tamanho, sem que a inflação repique. Voltou à cena o famoso PIB potencial, ou quanto um país pode crescer sem pressão sobre os preços. E consideram estar havendo “um fechamento do hiato do produto”. Recado para o BC: é preciso continuar com a política de juro alto, para conter um suposto ímpeto consumista da população.
Em uma das reuniões, em São Paulo, um economista ousou discordar. Traçou projeções otimistas sobre a capacidade de produção do Brasil, mas foi logo desautorizado por Mesquita: “Vamos parar de falar de cenários róseos. Vamos discutir os riscos”. Curioso. Não combina com os discursos otimistas do chefe dele. Em público, Henrique Meirelles não se cansa de dizer que o Brasil está mais sólido como nunca antes na história. Que está imune a tempestades financeiras. A quatro paredes, não é bem assim. Leitura: para as massas, circo e otimismo. Para os privilegiados, informações e impressões que viram dinheiro.
As ligações estreitas entre o BC e o mercado, no Brasil, não têm paralelo no mundo. Nos Estados Unidos, reino do capitalismo financeiro, o presidente e os governadores do Federal Reserve (Fed) estão submetidos a duras regras. Além de um código de conduta rigoroso, explicitado nos sites de todas as regionais do Fed, duas vezes por ano, o presidente da autoridade monetária (Ben Bernanke) é obrigado por lei a dirigir-se ao Congresso para explicar os objetivos e os resultados da política monetária, com ênfase nos efeitos sobre o crescimento e o desemprego.
Aliás, entre as responsabilidades do Fed está “conduzir a política monetária, por meio de controle da oferta de dinheiro e do crédito na economia, perseguindo o pleno emprego e a estabilidade dos preços”. Também está no site da instituição (www.federalreserve.gov).
O quê? Um BC preocupado com o emprego? Certamente é coisa de país atrasado e economistas subdesenvolvidos.
Perante os congressistas, Bernanke, como foram Alan Greenspan e todos os antecessores dele, é submetido a uma sabatina. Nada passa em brancas nuvens. São ocasiões aguardadas por todo o mercado, mas abertas ao público, registradas e televisionadas. Todos têm direito à mesma informação em tempo real.
Consultada por CartaCapital sobre a existência de encontros secretos entre os membros do Fed e o mercado, a porta-voz para a imprensa da regional de Nova York do banco, Linda Ricci, até se surpreendeu, em princípio, com a pergunta. Negou que houvesse qualquer coisa do gênero.
Linda disse que as únicas conversas não reveladas para a imprensa são as trocas de idéias diárias do Fed com os chamados primary dealers, prática comum em todos os BCs mundiais, inclusive o brasileiro. Os primary são instituições financeiras cuja função é indicar ao BC as condições do mercado no dia, dar liquidez aos negócios e participar ativamente dos leilões de títulos públicos. “O teor das conversas não é publicado, mas o fato de elas existirem é público”, tratou de esclarecer Linda.
A história dos encontros a portas fechadas entre o BC e o mercado é apenas uma dentre as relações pouco republicanas da autoridade monetária. Há outras. Uma delas, exemplar. Em 14 de março de 2005, segundo noticiou o jornal Valor Econômico, o BC pediu à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) que organizasse um seminário a portas fechadas, com o objetivo de discutir mudanças nas regras cambiais. Na ocasião houve, ao menos, entrevistas coletivas após o encontro. De todo modo, economistas de universidades mostraram-se descontentes com o rumo das discussões, por não terem sido consultados.
Em uma sessão da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara, em 27 de setembro de 2005, foram convidados João Sicsú, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alexandre Schwartsman (hoje, ABN Amro), então diretor da Área Internacional do BC. O diretor não compareceu e enviou, para representá-lo, Alexandre Geraldo Magela Siqueira, gerente-executivo de Normatização de Câmbio e Capitais Estrangeiros do BC. O propósito era discutir a ampliação do prazo, de 180 para 210 dias, para os exportadores trazerem os dólares obtidos com as vendas externas para o Brasil.
Provocado por Sicsú sobre a reunião na Fiesp, Magela afirmou desconhecer que teria sido uma iniciativa do BC. Ficou o dito pelo não dito, mas se era uma inverdade, perguntou Sicsú, por que ninguém do BC havia protestado contra o texto do Valor Econômico? Não obteve resposta. Na ocasião, Magela negou que a ampliação da chamada cobertura cambial estaria no escopo de um projeto mais abrangente de liberalização desse segmento do mercado. Os fatos posteriores provam que estava. O áudio da sessão está disponível para consulta pública.
A procuradora da República do Distrito Federal, Valquíria Quixadá, encaminhou uma recomendação, em 2005, à Procuradoria-Geral para que solicitasse a Meirelles e ao então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, uma justificativa do motivo de se ampliar o prazo para a repatriação dos recursos por meio de resoluções do Conselho Monetário Nacional e não pelo Congresso Nacional. Como resposta, ambos disseram entender que a Lei 4.595, de 1964, assegurava a constitucionalidade das iniciativas.
Valquíria tem outra visão. Segundo ela, as resoluções são inconstitucionais, pois afrontam a Lei 4.131/62, que “disciplina a aplicação do capital estrangeiro e as remessas de valores para o exterior”. Da forma como foi feito, diz, “o Conselho Monetário Nacional e o BC usurpam uma competência do Legislativo”.
Os fatos: os prazos foram ampliados e, por Medida Provisória, em agosto de 2006, o processo culminou com a permissão para os exportadores deixarem no exterior parte dos recursos das vendas externas. Cabe ao CMN fixar os limites; por ora, 30% podem ficar depositados lá fora. Os restantes 70% têm 360 dias para ingressar no País. O projeto foi aprovado pelo Senado em novembro do ano passado. Não foi um assunto amplamente debatido na sociedade. Não houve consulta pública. Mas o projeto obteve o apoio dos industriais, por causa do câmbio supervalorizado.
Toda a questão, resume João Sicsú, transcende resoluções ou normas pontuais. “Devemos refletir sobre o que é melhor para o País. Devemos refletir sobre a República.” Segundo ele, foram conferidos superpoderes ao BC, após a adoção do regime de metas de inflação, pelo Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999. Segundo o artigo 1º, as metas devem ser fixadas pelo CMN. Mas o artigo 2º dá total liberdade ao BC de persegui-las da forma que julgar conveniente.
Na avaliação do economista, o BC opera com duas variáveis-chave da economia, juro e câmbio. E nunca dá explicações exatas e técnicas sobre suas atitudes. Exemplo: Meirelles vive a repetir que só mira a meta de inflação, mas é incontestável que a atual política de compras agressivas de dólares no mercado tenta evitar um tombo maior do câmbio, como ficou evidente nas reuniões com os economistas. Questiona Sicsú: “Qual é a política do BC para o câmbio? Mesmo para a taxa de inflação: por que o juro é tão elevado se a inflação passada e a projeção para o futuro são de números abaixo da meta?”
A transparência está em xeque. E não é pouco. A independência formal do BC, como advogam os porta-vozes do mercado, precisaria ter como contrapartida o mais absoluto disclosure (abertura), para usar um termo tão em voga.
É parte da história recente a acusação de favorecimento financeiro que o BC concedeu aos bancos Marka e FonteCindam em 1999, durante o ataque especulativo ao real, que gerou uma brutal desvalorização cambial. Foi 1,6 bilhão de reais, a valores da época. No meio da corrida especulativa, o BC comprara câmbio dos bancos abaixo do preço do mercado para evitar, como justificou a posteriori, a ocorrência de uma crise sistêmica. Os bancos quebraram. Houve condenação judicial dos envolvidos, inclusive de alguns diretores do BC. Todos estão soltos. O banqueiro Salvatore Cacciola fugiu para a Itália. Discutir amplamente questões de política econômica, portanto, não é teoria conspiratória. Está no escopo de quem sonha construir um País mais democrático e republicano.

Nós e o Mundo
No olho do furacão

por Márcia Pinheiro
Crescem as incertezas sobre o futuro da economia mundial e os emergentes voltam a ser a bola da vez
A instabilidade no mercado financeiro global continuou a assombrar os investidores na semana que se iniciou na segunda-feira 5. O ziguezague das bolsas, juros e câmbio aguçou dúvidas sobre a solidez da economia brasileira. Isso porque, quando o cinto aperta, a primeira coisa que fazem os players pesos pesados é vender ativos de países emergentes e comprar títulos do Tesouro americano.
Um dado parece escapar às atuais análises econômicas. De um lado, o Brasil está menos vulnerável, porque tem reservas superiores a 100 bilhões de dólares e zerou a sua dívida externa. De outro, no entanto, cresceram muito as aplicações de estrangeiros no mercado nativo. Em dezembro de 2006, somavam 101 bilhões de dólares, alocados da seguinte forma: 82,9 bilhões em ações, 17,1 bilhões em renda fixa (títulos do governo e fundos), 440 milhões em derivativos e 320 milhões em debêntures.
Em suma, hoje, as reservas brasileiras são do exato montante do dinheiro que os investidores aqui depositam. Uma janela de vidro. Houve um processo acelerado de abertura do País ao capital financeiro. Para ter idéia, em dezembro de 1998, antevéspera do estouro cambial brasileiro, os investimentos dos estrangeiros eram seis vezes menores: totalizavam 17 bilhões de dólares. Os dados são do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (gráficos).
Isso explica por que a Bovespa e a BM&F tremem a cada dado negativo, referente sobretudo à economia americana. Na visão de Peter Cohan, da consultoria Peter S. Cohan & Associates, “a queda de 8,8% da Bolsa de Xangai, na terça-feira 27 de fevereiro, foi como atirar um fósforo aceso em madeira encharcada de combustível”. Nesse caso, afirmou a CartaCapital, “a madeira é o mercado de hipotecas de segunda classe (subprime), que soma 1,3 trilhão de dólares”, no qual não se faz nenhuma garantia do mutuário.
Os rombos financeiros são a gasolina, como, por exemplo, a alavancagem da Bolsa de Nova York. A dívida dos investidores com as corretoras – cuja garantia são as ações que possuem – atingiu 286 bilhões de dólares em janeiro, nível recorde. Se os preços dos papéis caírem muito, haverá uma espiral negativa, pois os investidores tenderão a vender suas carteiras para honrar os empréstimos, opina Cohan.
O fato leva a um movimento de aversão total ao risco. Os analistas estrangeiros estão menos complacentes com o atual cenário do que os nativos. A equipe de economistas do Danske Bank divulgou um relatório sem meias palavras: “Nós vamos observar turbulências nos suspeitos de sempre: a lira turca, o real brasileiro e o peso mexicano são especialmente vulneráveis… Se o mercado continuar a se focar no nível de preços dos ativos, todas essas moedas estão caras e suscetíveis a correções”.
O banco manteve a recomendação aos clientes de que diminuam os investimentos nos mercados emergentes, exceto os asiáticos. Principalmente porque, com o aumento da taxa de juro japonesa, não é mais tão vantajoso tomar recursos emprestados na segunda maior economia do mundo para aplicar no Brasil, por exemplo. O futuro está muito incerto e essa era uma das estratégias dos grandes hedge funds (fundos altamente especulativos), em uma operação denominada carry-trade.
Outra instituição financeira que colocou as barbas de molho foi o Scotia Bank. Segundo o economista-chefe, Pablo Bréard, “a aversão global ao risco está crescente e os ativos dos emergentes, na defensiva, o que elevou o peso do carregamento de títulos da dívida externa soberanos e também de empresas”. Mesmo que haja sensíveis diferenças entre os países latino-americanos, Bréard diz que há uma repetição de um padrão histórico cruel: “Os investidores globais, com grandes portfólios, optaram por ignorar as características de cada nação”. Em bom português, em momento de crise, colocam todos no mesmo pacote. E partem para a venda.
No front doméstico, o Comitê de Política Monetária (Copom) reduziu a Selic em apenas 0,25 ponto porcentual, para 12,75% ao ano, na quarta-feira 7. Relegou a segundo plano o fato de que a produção industrial brasileira interrompeu um ciclo de três meses consecutivos de alta, na comparação com o mês anterior.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve queda de 0,3% em janeiro, ante dezembro. Sinal de que, longe de um crescimento desenfreado, o Brasil real apenas engatinha. Não há choque de demanda que possa provocar surtos inflacionários. No mais, o setor que melhor se saiu no primeiro mês do ano foi o de bens de capital (alta de 1,7% ante dezembro e 18% na comparação com janeiro de 2006). Ou seja, investimento que evitará gargalos de produção e escassez de mercadorias.
Se as previsões pessimistas do mercado internacional se confirmarem, mais uma vez, por erro de política econômica, o País vai amargar uma forte ressaca, sem ter participado da festa de crescimento global dos últimos quatro anos.
Memória
As crises costumam dar aviso prévio. Basta lembrar da Tailândia e do crash pontocom
Não por acaso, as crises financeiras pegam os investidores no contrapé, porque o seu potencial estrago costuma ser sistematicamente minimizado por economistas ligados a bancos e organismos internacionais. “Soluços”, “ajustes de preços”, “acomodação” são termos que inundam as páginas dos cadernos de economia dos jornais. Não é diferente desta vez. Não se pode cravar se 2007 será o estopim de uma nova onda de instabilidade global. Mas é saudável rememorar a crise asiática e o crash da Bolsa de tecnologia Nasdaq, também a princípio desqualificados por supostos especialistas.
Os economistas Ricardo da Costa Nunes e Selene Peres Nunes, do Tesouro Nacional, produziram um elucidativo trabalho sobre a crise na Tailândia, em 1997, que rapidamente se espalhou pela Ásia. Notam que, dois anos antes, o Banco Mundial publicara um livro intitulado O Milagre Macroeconômico da Tailândia: ajustamento e crescimento sustentado, repleto de loas ao suposto modelo bem-sucedido de desenvolvimento.
Dois anos depois, o país sofreu uma forte crise cambial. “A queda da confiança dos investidores se estabeleceu em virtude do déficit em transações correntes, de 12 bilhões de dólares, ou 8% do Produto Interno Bruto (PIB) tailandês, e também por causa do crescimento da dívida externa para 90 bilhões de dólares (47% do PIB).” O mercado partiu, então, para um ataque especulativo contra a moeda local, o baht, e a histeria espalhou-se pelas Filipinas, Malásia, Cingapura e Brasil, entre tantos emergentes.
Outro exemplo, esse de 2000, foi o estouro da bolha pontocom. Até então, as ações ligadas à tecnologia, sobretudo a de sites e incubadoras, disparavam na Bolsa eletrônica Nasdaq, na crença de que os velhos modelos contábeis eram inadequados para avaliar o futuro fluxo de caixa da nova economia. Mas o milagre foi tamanho que o santo desconfiou – principalmente os especuladores profissionais, que saíram do mercado ao primeiro sinal de desassossego. Do pico de 5.132 pontos do índice Nasdaq, em 10 de março de 2000, o valor de mercado das empresas negociadas caiu à metade até dezembro.
Pode-se argumentar que os países emergentes tinham regimes de câmbio fixo ou semifixo. Que a valorização da Nasdaq contrariava qualquer livro-texto de economia. Pode-se alegar ainda que hoje, no Brasil, o câmbio flutua, as contas externas estão em dia e o País tem mais de 100 bilhões de dólares em reservas. Mas, como reza uma lenda entre economistas, ninguém sabe quando acontecerá a próxima crise, mas com certeza será diferente da última.
Nosso Mundo

A ascensão do outsider
por Gianni Carta
O presidenciável François Bayrou encarna o desencanto do eleitor francês. E sobe
O enigmático François Bayrou, candidato centrista em ascensão nas pesquisas eleitorais, encarna a crise existencial (ou seria ideológica?) que atinge a maioria do eleitorado francês. Segundo enquete realizada recentemente, 61% dos eleitores, ou três em cinco aptos a votar nas presidenciais de 22 de abril, não confiam nem na direita nem na esquerda para governar o país. Nesse contexto, desponta Bayrou, 55 anos, ex-professor de latim e, nos anos 90, ministro da Cultura de governos com sólidas raízes de direita.
Bayrou é o chamado “Terceiro Homem’’ na corrida presidencial, atrás do ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, de 51 anos, da União por um Movimento Popular (UMP), e de Ségolène Royal, candidata socialista de 53 anos. A última sondagem de intenções de voto, divulgada, na quinta-feira 15, pelo Instituto CSA e pelo jornal Le Parisien, revelou que Sarkozy conta com 27 pontos, Ségolène, com 26, Bayrou, da União pela Democracia Francesa (UDF), com 21. Mais atrás, com 14%, vem Jean-Marie Le Pen, de 78 anos, do partido de extrema-direita Frente Nacional (FN).
O fato de Bayrou ter perdido três pontos (e Sarkozy e Ségolène terem ganhado um ponto cada), especula o editorial do Le Parisien, é “talvez provisório”, visto que o eleitorado de Bayrou é o mais volátil de todos. E, deve-se acrescentar, em uma nação que, provavelmente, tem o eleitorado mais volátil da Europa. Para ilustrar, um levantamento divulgado na segunda-feira 12 indica que, caso chegue ao segundo turno, em 6 de maio, Bayrou receberia 52,5% dos votos e Ségolène, 47,5%.
É simples a proposta do ex-ministro da Cultura. Ele pretende acabar com a divisão “pré-histórica” entre a esquerda e a direita. Se eleito, substituirá o atual sistema, que mescla presidencialismo com parlamentarismo, por um sistema parlamentar proporcional, semelhante ao da Itália. De modo que, após as legislativas de junho, seria formado um governo de união nacional, do qual participariam ministros de todas as inclinações políticas. Em resumo, Bayrou, que se apresenta como outsider, quer eclodir o atual sistema, que, segundo ele, só provoca discórdias infindáveis.
Na verdade, a estratégia de se apresentar como o homem anti-sistema foi adotada com grande eficácia por Le Pen nas presidenciais de 2002. Le Pen surpreendeu ao derrotar o candidato socialista Lionel Jospin e enfrentar o presidente Jacques Chirac no segundo turno. Desta feita, contudo, é improvável que Le Pen, mesmo repetindo o figurino, chegue ao segundo turno. Além de disputar o papel de outsider com Bayrou, ele viu Sarkozy se apropriar do discurso contra a imigração, uma de suas bandeiras.
Volta e meia, Sarkozy anuncia: “A França para os franceses”. Diz aos imigrantes e filhos que aqueles que não estiverem satisfeitos com as tradições e valores da França podem voltar para casa. Além disso, Sarkozy propõe a criação de um Ministério da Imigração e Identidade Nacional, debaixo de duras críticas de Ségolène. Bayrou também não digeriu a proposta.
Bayrou disse em Saint-Denis, um dos subúrbios onde, no fim de 2005, a morte de dois meninos, eletrocutados enquanto se escondiam da polícia, provocou cenas de violência inaudita: “Quando alguém tem um mínimo de memória da história da França, e quer um país pacífico, então esse alguém não mistura essas duas palavras (imigração e identidade)”. Bayrou foi ovacionado. Sarkozy, que chamou os manifestantes de “escória” em 2005, não colocou os pés em Saint-Denis durante a campanha.
O voto em Le Pen em 2002, portanto, poderia se reproduzir em Bayrou. Seria, novamente, a tradução do protesto dos insatisfeitos. E, de fato, eles têm se manifestado nos últimos anos. Após a inesperada vitória de Le Pen no primeiro turno das presidenciais em 2002, houve outra votação de protesto, num referendo em maio de 2005, contra a Constituição Européia. E como explicar a atual volatilidade do eleitorado, capaz de provocar novas surpresas? Retruca Jacques Gerstlé, professor de Ciências Políticas da Sorbonne: “Ela decorre principalmente do atual nível de desemprego (8,7% em 2006), que não foi resolvido por governos e presidentes de esquerda e de direita desde o primeiro choque do petróleo, em 1973”.
Entre outras questões centrais em jogo, como novas políticas para os subúrbios e de segurança, inclui-se, por exemplo, a da habitação. Paris tem o metro quadrado mais caro da Europa. E várias comunas não respeitam os 20% de moradias sociais que devem ser oferecidas por preços reduzidos para os menos endinheirados ou desempregados. Outro problema, assustador, é o da dívida pública: 63,6% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2006, segundo o Ministério da Economia e das Finanças. Só o “buraco” da seguridade social é de 10 bilhões de euros, provocado principalmente pela deterioração dos regimes de aposentadoria.
Em linhas gerais, o programa de Bayrou concentra-se nas seguintes áreas: desemprego, maior flexibilidade econômica, exclusão e deterioração do meio ambiente, educação e Europa (ele é pró-comunidade). Mas, se Bayrou se posiciona no centro do palco político, as alianças futuras do candidato são, no mínimo, ambíguas. Instado pelo diário Libération a dizer se ele visa o lugar da UMP ou do PS, um lacônico Bayrou retrucou: “Ambos terão sua hora da verdade”.
Escreveu o editorialista Laurent Joffrin, do mesmo jornal: “O que acontecerá se ele for eleito? Com quem governará? Veremos. Qual será a sua orientação? Isso vai depender. Em suma, se François Bayrou dispõe incontestavelmente de um programa, a maneira como ele o colocará em prática é um enigma envolvido por mistérios”.
Comenta o professor Gerstlé: “É devido à ambigüidade que o eleitorado de Bayrou é o mais volátil”. Há, claro, quem não descarte a sua vitória. Na capa do semanário Le Nouvel Observateur, vê-se o rosto de Bayrou com uma expressão de esperança. Abaixo da foto, a pergunta: “E se eu for o escolhido?”
Quem mais teme a possibilidade é Ségolène. Foi François Hollande, pai dos quatro filhos da candidata do PS quem colocou a boca no trombone, alertando os eleitores de esquerda a não repetir o mesmo erro de 2002, quando Jospin perdeu para Le Pen no primeiro turno. Segundo a já citada pesquisa de intenções de voto, uma dissonância entre a proximidade partidária e a escolha eleitoral perdura há meses. E ela é mais marcante à esquerda do que à direita. O principal responsável, constatou o levantamento, é Bayrou. A chamada esquerda-bayrouista, descontente com Ségolène, progrediu de 1,5%, em dezembro, para 3,8%, em fevereiro. Outros 4,9% de eleitores de esquerda afirmam que votarão em Sarkozy. Já a esquerda-lepenista permanece estável em 1,2%. Em contrapartida, o movimento da direita para a esquerda, de 1,6%, beneficia particularmente Ségolène, que capturaria dois terços desses votos.
Por essa razão, o candidato da UDF é considerado um forte adversário de Ségolène no primeiro turno. Na terça-feira 13, na reunião semanal dos socialistas, um ex-ministro falou sobre a necessidade de colocar em evidência as diferenças entre Ségolène e Bayrou. “Para ganharmos”, argumentou o ex-premier Laurent Fabius, “precisamos conquistar o maior número de votos no primeiro turno, para evitar a dispersão no segundo”. Um ex-ministro reconheceu: “Bayrou virou o candidato anti-sistema”.
Quem é Bayrou? Ele gosta de pulôveres felpudos, semelhantes aos do boliviano Evo Morales. Mas os pulôveres de Bayrou, filho de fazendeiro nascido perto de Lourdes, a cidade de peregrinação católica no sudeste da França, não simbolizam um nacionalismo arraigado como o de Sarkozy ou Le Pen, mas a simplicidade de homem que cultiva a terra. Católico praticante, ele conseguiu se desfazer de uma gagueira ainda jovem. Enquanto estudava literatura na universidade e, posteriormente, lecionava latim, auxiliava a mãe na fazenda. É autor de diversas biografias históricas.
Casado há 35 anos, pai de seis filhos, 11 netos, Bayrou é, provavelmente, o único candidato que sabe conduzir um trator e tirar leite de vaca. O candidato da UDF ainda trabalha meio período como fazendeiro. Ele explora a imagem de agricultor e costuma posar para fotógrafos e cinegrafistas ao lado de tratores. É assim, a encarnar a imagem de homem do campo de classe média, que ele pretende passar o recado de uma postura política não ideológica. A exemplo de Le Pen, fala alto e claro o que pensa. Diz, com razão, que Sarkozy é favorecido pela mídia, por ser amigo de vários patrões de tevê, revistas e jornais. Ao mesmo tempo, o fenômeno Bayrou é, em parte, cria dos meios de comunicação. O motivo? A campanha eleitoral, dominada por Sarkozy e Ségolène, precisava ficar mais interessante.
A falta de legenda não convence todos. Bayrou, a maioria se recorda, foi ministro da Cultura de governos de direita. Mais: pertence à UDF, tradicionalmente um partido conservador, pelo qual obteve 7% dos votos no primeiro turno das presidenciais de 2002. E é a grande esfinge política da França atual.
IncertezaBayrou tem um eleitorado volátil e corre o risco de não chegar ao segundo turno
Para Jacques Gerstlé, integrante do Centro de Pesquisas Políticas da Sorbonne, Bayrou é realmente centrista, mas, por depender de um eleitorado volátil e não ter maioria, dificilmente chegará ao segundo turno
CartaCapital: François Bayrou, que serviu a governos de direita como ministro da Cultura, realmente deslizou para o centro?
Jacques Gerstlé: Ele sempre foi um homem de centro, a despeito de ter sido ministro da Cultura de governos de direita. Por ter mantido essa posição no tablado político, Bayrou pode dizer que sempre foi um centrista autêntico. Portanto, tem credibilidade política. Bayrou encontra pela frente dois problemas. Primeiro, seu eleitorado é o mais volátil de todos. Segundo, ele não tem a maioria. Como poderá governar sem maioria?
CC: Segundo pesquisa recente, existe um movimento da esquerda em direção à direita mais importante que o movimento contrário. Por que a esquerda é mais volátil, ao menos no momento, do que a direita?JG: Este é, a meu ver, um problema ainda mais complexo que o do nível de desemprego. Temos de colocar a esquerda francesa no contexto no qual se encontram partidos políticos em outros países da Europa, onde são confrontados por questões como as da segurança e da liberdade econômica. A esquerda francesa, como aconteceu em outros países europeus, passou por um período de descompasso em relação à atual conjuntura política e econômica. Entretanto, a esquerda francesa lidou com superioridade em certas áreas, como educação, integração social, saúde e justiça.
CC: A divisão entre a esquerda e a direita está ultrapassada? Existe realmente um centro na França?
JG: Não creio que a divisão entre a direita e a esquerda tenha sido ultrapassada. Nem Bayrou nega a dicotomia. E ele tem razão em posicionar-se de tal maneira. Quando os eleitores são instados a responder sobre valores ideológicos, eles se colocam de um lado ou de outro do espectro político. Por tabela, existe um centro.
CC: O programa de Ségolène Royal é de esquerda?
JG: Ela toma posições claramente de esquerda, no que se refere, por exemplo, à justiça social e à integração dos imigrantes. Mas Ségolène adotou medidas de direita. Por exemplo, jovens delinqüentes reincidentes deverão, segundo ela, ser enviados para centros controlados pelo Exército. Ségolène também coloca ênfase na família como centro motor da sociedade. São valores de direita.
CC: Qual seu prognóstico para o segundo turno?
JG: Creio em uma disputa entre Sarkozy e Ségolène. Baseado nas atuais sondagens, Sarkozy tem maiores chances de ganhar. Mas temos de esperar o segundo turno.
Mais Valia

As cooperativas em crescimento

por Editoria de Negócios


As cooperativas de crédito paulistas encerraram 2006 com 1 bilhão de reais em ativos, um crescimento de 18,23% em relação ao ano anterior. No mesmo período, o volume de operações teve uma expansão de 12,44% e o patrimônio líquido das instituições aumentou quase 18%, totalizando 731 milhões de reais. Os valores estão relacionados apenas às 197 entidades ligadas à Central das Cooperativas de Crédito do Estado de São Paulo (Cecresp), mas estima-se que as mais de 1,4 mil organizações do setor homologadas pelo Banco Central movimentaram 30,2 bilhões de reais no último ano em todo o Brasil.
Com uma taxa de juro média de 2% ao mês e um índice de inadimplência geralmente inferior a 3%, as cooperativas de crédito podem ser criadas por grupos de empregados, profissionais liberais ou produtores rurais, por exemplo. Para funcionar, são necessários pelo menos 20 sócios. Todas as operações são realizadas entre os cooperados, nunca com o público externo. Em média, os credores recebem a metade dos juros cobrados de quem toma empréstimos. O restante é utilizado na manutenção das entidades e das centrais que prestam assistência, além dos bancos cooperativos, que hoje possuem cerca de 8 bilhões de reais em ativos e podem oferecer talões de cheque e cartões de crédito e débito aos clientes.
De acordo com Manoel Messias da Silva, presidente do Cecresp, dois fatores explicam o crescimento do setor: “As cooperativas investiram muito em tecnologia para oferecer atendimento on-line, o que aumentou o número de sócios. Além disso, as últimas três resoluções do Banco Central, no governo Lula, deram mais liberdade e autonomia para as organizações”. – Por Rodrigo Martins

Franquia
A nova Angola do consumo
Angola entra, a partir de agora, em um novo momento da reconstrução do país. Na segunda-feira 26, será inaugurado o primeiro grande centro comercial da capital Luanda, o Bela Shopping – que começa com uma empresa brasileira. A Mundo Verde, rede de franquias especializada em produtos naturais, inicia a operação internacional com a inauguração da primeira unidade no país africano.
Em Angola, a expansão será feita por meio de um contrato de master franquia com a empresa Nutrição e Saúde, que tem como meta abrir seis lojas – uma por ano. No momento, também há negociações para franquias nos Estados Unidos, Emirados Árabes, Portugal e países da América Central. No Brasil, a empresa conta com 108 lojas, espalhadas por 11 estados. – Por Paula Pacheco

Alternativas
O lixo que dá lucro
Nem tudo está perdido. Ao mesmo tempo que o excesso de lixo produzido pelo brasileiro gera cada vez mais problemas, há empresas faturando com o que até outro dia parecia sem função. Segundo estudo exclusivo encomendado pela Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (a Abetre, que neste ano completa uma década de fundação), feito em parceria com a PriceWaterhouseCoopers, as indústrias do setor (cerca de 15 mil ) processam cerca de 3,3 milhões de toneladas por ano. O faturamento estimado de 2006 foi de 1,5 bilhão de reais nas 112 unidades ativas de disposição de resíduos (aumento de 15% em relação a 2005). “Tudo indica que o mercado pode aumentar ainda mais, já que as empresas geradoras estão cada vez mais alinhadas às boas práticas ambientais”, diz Diógenes Del Bel, presidente da entidade. – PP
Vendas
Credicard Hall prefere Visa
Parece até trote. Quem ligava para o call center da casa de espetáculos patrocinada pela Credicard Citi em São Paulo, até meados de março, ouvia a propaganda da maior concorrente da administradora de cartões de crédito. Após as alternativas do menu, a mensagem gravada era: “O Credicard Hall prefere Visa”. Para o cliente, a confusão não parava por aí.
Embora sugerisse o uso da outra marca, a casa oferecia desconto de 25% para o cliente que utilizasse o cartão Credicard na compra de ingressos. A estratégia comercial ainda é adotada pela casa de shows. Quem prefere Visa, na verdade, é a empresa TicketMaster, responsável pelas vendas por telefone. Procurada por duas semanas, a administração do Credicard Hall não comentou a incoerência, mas tratou de excluir o trecho sobre o concorrente da gravação. – Por André Siqueira
Cosméticos
Um espelho para a beleza infantil
O Brasil é o terceiro maior consumidor de cosméticos do mundo, de acordo com o Instituto de Pesquisas Euromonitor. Só em 2006, o setor movimentou 18,2 bilhões de dólares, o que representa um aumento de 26% em relação a 2005.
De olho nesse mercado promissor, ainda dominado por grandes marcas, a linha de cosméticos Pinniandimi, da fabricante Programa Infantil, lançará, no segundo semestre, três novos produtos para a criançada: condicionador, loção hidratante e sabonete vegetal em barra. No mercado desde julho do ano passado, a marca já ocupa 50 pontos-de-venda em cinco estados e pretende incrementar as vendas em pelo menos 50% até o fim deste ano.
Para brigar por mais espaço nas prateleiras, a nova grife investe na popularização dos seus personagens: Pinni, uma garotinha de 3 anos, e Dimi, seu irmão mais velho. Da junção dos nomes, surgiu a marca.
Silvana Samaritano, sócia e diretora da Pinniandimi, diz que a companhia também tem planos de exportação. “Por isso, a linha Banho e Aroma já foi desenvolvida obedecendo aos padrões de qualidade americanos e europeus.” – Por Eliane Scardovelli
Capital S.A.

O PULO-DO-GATO

por Márcia Pinheiro
As antecipações cambiais aliviam a perda dos exportadores com o dólar


Se o real está tão valorizado, por que a balança comercial brasileira bate recorde atrás de recorde e as previsões de vendas externas este ano alcançam quase US$ 120 bilhões? Além dos preços das commodities ainda em alta, da voracidade das compras externas da China e do ótimo nível médio de crescimento global – melhor que o nacional –, há principalmente duas operações financeiras que vêm beneficiando os exportadores. Chamam-se Adiantamento sobre Contrato de Câmbio (ACC) e Adiantamento sobre Cambiais Entregues (ACE). O primeiro é concedido antes do embarque da mercadoria e o segundo, após tê-la embarcado. Esses dois tipos de contrato avançaram cerca de 150% desde o estouro da paridade cambial, logo após a queda do ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, no início de 1999.
Esse salto, evidentemente, acompanhou a evolução da balança comercial brasileira. Em 1998, com o câmbio ainda engessado, o entra-e-sai das mercadorias no Brasil registrou um déficit de US$ 6,6 bilhões. Com a desvalorização do real desorganizada e forçada pelo mercado financeiro, a balança só se recuperou do terreno negativo em 2001, com um superávit de US$ 2,5 bilhões. A partir daí, com o câmbio flutuante, os saldos foram crescendo sustentadamente. Para este ano, a previsão é de um saldo positivo de US$ 41 bilhões.
Por aqueles instrumentos financeiros, o exportador antecipa sua receita em reais em até 570 dias – 360 dias pelo ACC e 210 pelo ACE –, por intermédio de instituições financeiras, tendo como garantia a receita futura que terá quando o importador externo saldar a sua dívida em dólares. O pulo-do-gato é que os reais antecipados rendem 19% ao ano (a taxa Selic), ou mais, enquanto o custo do ACC e do ACE vai de 5% ao ano para a grande corporação a 13% para a pequena e média, segundo o diretor-interino de Comércio Exterior do Banco do Brasil, Rogério Lot. A diferença não compensa a perda cambial, mas ameniza a situação dos exportadores brasileiros – dos grandes, diga-se de passagem, porque ganham em escala; os pequenos já vêm desempregando, quando não fechando as portas. Do ponto de vista do banco, o negócio também é bom. Quem opera nesse segmento capta recursos lá fora por meio de suas agências, subsidiárias ou mesmo emissão de títulos de dívida. O mercado estima que dos US$ 117 bilhões previstos pelo ministro Luiz Fernando Furlan para as exportações este ano, de US$ 25 bilhões a US$ 30 bilhões terão usado o ACC e/ou o ACE. O inconteste líder nesse segmento é o BB, com operações acumuladas de US$ 9,07 bilhões até setembro e previsão de encerrar o ano entre US$ 11 bilhões e US$ 12 bilhões, um aumento de até 30% em relação a 2004. O diretor do BB diz atender do pequeno ao grande empresário e que não é necessariamente a vantagem entre os juros interno e externo é a maior motivação do exportador. “Muitas vezes trata-se de planejamento de fluxo de caixa. Há empresas que se utilizam desses instrumentos com prazos de apenas dois dias”, afirma.
Já o diretor-executivo da Área Internacional do Bradesco, José Guilherme Lembi de Faria, lembra que o tomador de ACC ou ACE tem de se precaver contra uma eventual desvalorização cambial no período. Para isso, recorre aos contratos futuros de dólar negociados na Bolsa de Mercadoria & Futuros. Segundo ele, isso acaba onerando a antecipação, nem sempre a tornando tão vantajosa. Mas o Bradesco não tem do que reclamar: no acumulado do ano até setembro, já realizou cerca de US$ 6,7 bilhões por meio das antecipações, o que o leva a prever um aumento de 27% nessas operações este ano em relação a 2004.
Ainda que os bancos apontem defeitos no paraíso da arbitragem entre os megajuros brasileiros e os externos, a verdade é que só empresas capitalizadas, que realizaram gordos lucros desde 2004, podem se dar ao luxo de desprezar as operações de ACC e ACE. Isso porque têm caixa suficiente para esperar o importador externo saldar sua dívida. Outras “sortudas” são as empresas de capital aberto, que conseguem recursos mais baratos na Bolsa de Valores, ao emitir novas ações ou debêntures (títulos de dívida). Mas é passível de pouca discussão o fato de que essas linhas de financiamento acabam retroalimentando a balança comercial. As operações de ACCs e ACEs crescem porque as exportações avançam, e essas aumentam porque são facilitadas pelas antecipações. É um típico caso de quem surgiu primeiro: o ovo ou a galinha

CAPITAL S.A.
A VISÃO OBJETIVA DA ECONOMIA E DOS MERCADOS

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O DÉFICIT DEMOCRÁTICO
POR DELFIM NETTO
O poder do BC de controlar a taxa de inflação, ao manipular o PIB e o desemprego, deve ter como contrapartida a total transparência
Praticamente, todos os países possuem bancos centrais. Estes, com maior ou menor autonomia, são encarregados de manter tão estável quanto possível o nível dos preços medido por um índice, como é o caso do nosso Índice de Preços do Consumidor Ampliado (IPCA).
A variação porcentual do IPCA, entre dois instantes no tempo, é o que se chama de taxa de inflação. No passado não muito distante, tentava-se controlá-la manipulando algum agregado monetário (meios de pagamentos), acompanhado de políticas de renda (controle de preços e salários). Isso supunha a estabilidade da chamada demanda de moeda (o montante de moeda que o público deseja manter em seu bolso para cada nível de taxa de juro).
Os bancos centrais encontravam grande dificuldade de controlar efetivamente o agregado monetário e as políticas de renda encontravam resistência crescente pelos desequilíbrios que geravam ao longo do tempo. O sistema nunca funcionou, a não ser nos países com boas instituições, com câmbio fixo, com baixo movimento de capitais, com mercados competitivos bem organizados, relativamente abertos, e governos obedientes às restrições orçamentárias.
A coisa piorou muito com o aumento do movimento de capitais, o aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos, os avanços das inovações, que criaram novos e mais ágeis instrumentos de crédito, e a generalização do sistema de câmbio flutuante. O mercado financeiro sofisticou-se e colocou as expectativas dos agentes no centro de suas decisões. O resultado foi a dissolução da estabilidade da demanda de moeda.
A alternativa para tentar controlar a taxa de inflação com menor flutuação no PIB foi apelar para a fixação da taxa de juro nominal de curto prazo, na esperança que ela determina a taxa de juro real de longo prazo. Controlar-se-iam assim, através dos vários mecanismos de transmissão, a absorção interna e o equilíbrio do balanço em conta corrente.
Não há hoje no mercado nenhuma alternativa. Todos os países controlam a taxa de inflação pela manipulação da taxa de juro nominal de curto prazo, às vezes (como no Banco Central Europeu), com um coadjuvante menor, a observação de algum agregado monetário. E todos têm uma meta de inflação, implícita, como os Estados Unidos (em torno de 2%), ou explícita, como o Banco Central Europeu (menor que 2%) e o Brasil (4,5%, com tolerância de 2 pontos para cima ou para baixo).
Como é evidente, o Banco Central só pode cumprir a sua missão se dispuser de um modelo que mimetiza o quadro econômico e que inclua a sua ação ativa e a correspondente resposta reativa, produzidas pelas expectativas dos agentes. Menos evidente, mas tão importante quanto a condição anterior, é a necessidade da sua plena autonomia operacional. O sucesso do Banco Central depende da credibilidade diante dos agentes.
O sistema de metas funciona se puder impor custos (elevando a taxa de juro) aos três agentes que podem perturbar o equilíbrio dos preços: 1. Ao próprio governo, cujo excesso de gastos eleva a demanda e a relação Dívida/PIB. 2. Aos empresários, quando tentam explorar o seu poder econômico. 3. Aos trabalhadores, quando apoiados no poder econômico dos sindicatos ou na simpatia da autoridade, tentam elevar o salário real acima dos ganhos de produtividade.
É também absolutamente claro que o Banco Central operacionalmente independente implica um sério déficit democrático. O governo eleito pela preferência revelada da maioria da população nas urnas transfere, com mandato certo e irretratável, para um grupo de profissionais não eleitos, o poder extraordinário de controlar a taxa de inflação pela manipulação do PIB do país e do emprego.
Por que isso é aceito? Não é apenas porque a estabilidade monetária é boa para os negócios. É porque ela é um bem público inestimável, que protege as classes sociais e os estratos demográficos que não podem defender sua renda com a organização corporativa ou mecanismos de correção automática. A longo prazo, a estabilidade monetária é condição necessária (ainda que não seja suficiente) para o crescimento mais robusto do PIB e do emprego. Mas é condição necessária, também, para aumentar a coesão social com a redução da pobreza, a melhoria da distribuição de renda, além de reduzir o ritmo de flutuação da atividade econômica e do nível de emprego.
Tal déficit democrático deve ser compensado pela absoluta transparência do Banco Central e a completa e ampla divulgação do seu entendimento da economia nacional e das razões de sua ação. Pensar em um Banco Central sem plena autonomia operacional é um oximoro: uma contradição nos próprios termos.
As finanças e o cidadão
por Luiz Gonzaga Belluzzo
Os mercados jogam com o Banco Central a partida estratégica da “construção da confiança”. Sob a aparência da ciência e da técnica, o jogo é puramente de natureza política
Luiz Gonzaga Belluzzo
No livro La Monnaie Souveraine, os economistas Michel Aglietta e André Orléan definem a existência de três lógicas articuladas que sustentam a reprodução da ordem monetária, enquanto dimensão essencial da ordem social: a confiança hierárquica, a confiança metódica e a confiança ética. “A confiança hierárquica se exprime sob a forma de uma instituição, o Banco Central, que anuncia as normas de utilização da moeda e que é responsável pela emissão do meio de pagamento final... A confiança metódica opera no âmbito da segurança das relações interindividuais, garante a reprodução cotidiana e rotineira dos atos que constituem a ordem monetária, sobretudo os pagamentos das dívidas nascidas do seu funcionamento... A confiança ética diz respeito ao caráter universal dos direitos da pessoa humana.”
O funcionamento da sociedade capitalista de mercado, fundada no enriquecimento privado, depende da capacidade do Estado de manter a reprodução conjunta das três formas de confiança. Uma convenção social, o sistema monetário, serve de norma aos atos dos produtores independentes. Mas a ordem monetária capitalista não é um espaço homogêneo, em que os desejos dos indivíduos utilitaristas se harmonizam, senão um organismo em perpétuo conflito e transformação. Os agentes do processo de mudança são os privados: na busca do enriquecimento, tratam de romper as regras existentes, mediante a inovação e a transgressão das práticas rotineiras. As instituiçõe responsáveis pela gestão monetária, o Banco Central e o sistema privado de crédito, estão encarregados em sua interação evitar a deflagração de situações de pânico e desconfiança, reafirmando a vigência das normas que garantem a soberania do representante da riqueza universal.
A divisão do trabalho, a diferenciação de funções, a individuação de comportamentos e valores são a marca registrada da sociabilidade moderna. Seu desenvolvimento impõe, portanto, a intensificação da dependência recíproca e a ampliação das relações monetárias e salariais sob diversas formas. Na sociedade produzida pelo capitalismo, a afirmação do indivíduo é acompanhada pela crescente socialização da produção e do sistema das necessidades.
Entre o fim do século XIX e começo do XX, a evolução da sociabilidade moderna produziu o que se convencionou chamar de sociedade de massas. O social se desenvolve de forma ambígua e contraditória: aparece, diante dos indivíduos, como um espaço infinito da escolha, da produção incessante de desejos e das possibilidades de sua satisfação, mas também opera nos bastidores da alma, como uma força autônoma e constrangedora, um sistema de necessidades que, prima facie, só pode ser satisfeito pela conexão monetária sancionada pela atividade anônima do conjunto.
O desenvolvimento da sociedade de massas amplia, ademais, o complexo de necessidades coletivas, cuja satisfação depende da ampliação do poder financeiro do Estado. A socialização promovida pelo avanço das relações mercantis teve, assim, conseqüências sociais e políticas paradoxais: a “sobrevivência” do projeto da autonomia individual e do cidadão titular de direitos não pode ficar na dependência exclusiva de sua posição enquanto coágulo monetário. O Estado Social é a expressão da confiança ética mencionada por Aglietta e Orléan, única instância capaz de garantir o reconhecimento dos direitos econômicos e sociais do cidadão.
Não é pacífica a convivência entre o mundo da finança – constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza – e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da liberdade.
Na era de sua supremacia global, os mercados jogam com o Banco Central a partida estratégica da “construção da confiança”. Sob a aparência da ciência e da técnica, o jogo da confiança é essencialmente político e, nos dias de hoje, se desenvolve à margem do escrutínio democrático. Os critérios da ação política racional, democrática e libertadora, na maioria das vezes, se contrapõem à agenda dos mercados, em que circula e é avaliada a riqueza mobiliária global. Os agentes e os procedimentos da finança não são racionais nem irracionais, bons ou maus. Simplesmente cumprem os desígnios de sua natureza, sempre dilacerada entre a “ganância infecciosa” e o colapso da histamina.
O discurso econômico em voga pretende mascarar sua natureza política. Tenta explicar ao cidadão que é inteiramente fora de propósito entender os segredos que envolvem a administração da moeda e das finanças. O consenso dominante garante que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o imaginário social

Índice da edição 437

por Redação CartaCapital
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